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Malo Mori Quam Foedari (Antes a Morte que a Desonra)

Ana.cat
[Rieux (Reoz) - Vannes (Gwened), Bretanha]


Ana Catarina já quase não reconhecia aquela cidade, da última vez que ali estivera com o seu contingente a aguardar a integração nos exércitos bretões. Aquela cidade era cheia de vida e negócios, agora parecia quase uma aldeia, os exércitos da Hoste do Sul lá estacionados limitavam-se a garantir a protecção da fronteira contra eventuais invasores, e felizmente Ana e os seus companheiros não foram tomado como tal.
O grupo, agora menos numeroso do que da primeira vez, em virtude das baixas sofridas em combate, decidiu hospedar-se na mesma estalagem que os acolhera durante quase um mês, mas desta vez estavam só de passagem. À noite Ana não esperou sequer pelo jantar que lhes era servido, uma pobre sopa de legumes, quente o suficiente para aquecer o estômago do frio que se fazia sentir, e foi-se deitar. A Monforte estava cansada da longa jornada que o grupo tinha feito até ali, uma perigosa jornada feita entre bosques e escassas aldeias onde nem estalagens existiam. O grupo teve que por muitos dias acampar a céu aberto à mercê de salteadores e bestas. Mas felizmente nenhum dos dois os atormentara.

Enrolada em gastos cobertores de lã a condessa tentava dormir, queria estar fresca para o dia seguinte, mas o estado crítico de Bernardo, seu primo, aliado ao triste fim de Bluemouse tomavam-lhe os pensamentos.
Eis que sentiu algo a pressionar-lhe o corpo sobre o cobertor, pareciam patas de gato, ela virou-se e viu o seu pequeno arminho a subir-lhe o corpo e a enrolar-se junto à sua face.
Ana acomodou-o melhor, de forma a que ele não a sufocasse caso adormecesse naquela posição, e afagou-o na cabeça. O animal já estava domesticado, apesar de ainda conservar o seu instinto de pequeno predador.


- Que queres pequeno Elfyn? A dona está cansada... - queixou-se àquele parente afastado de doninha (mas bem mais elegante e fofo!), a que tinha homenageado com o nome do Grão-Duque bretão, o animal soltou um grunhido e adormeceu... a dona não tardou a seguiu-lhe os passos.

    * * *

Na manhã seguinte Ana foi das primeiras a levantar-se, após enganar o estômago com uma fatia de pão negro duro foi preparar ela mesma o seu cavalo, algo que não costumava fazer. Os dois ainda não se conheciam bem, e a mágoa que ainda sentia sempre que olhava para ele e lembrava da sua formosa égua baia morta em Limosin et La Marche também não ajudava. Mas aquela era uma forma de ter um maior contacto com o animal, para que ele começasse a confiar mais nela.
Após lhe ter colocado os arreios e de ter verificado se estavam de facto apertados, não fosse ela ter alguma queda na viagem até Vannes, Ana começou a escovar o animal, limpou-lhe o pelo dos detritos da viagem, carrapitos e parasitas.
Após estes cuidados a condessa arrastou um balde até ao equino e montou-o com a ajuda do primeiro. Custou-lhe um pouco, ainda tinha dores e faltavam-lhe as forças, mas lá conseguiu com alguma dificuldade. Dirigiu-se aos restantes elementos do seu grupo e pouco depois partiram em direcção a Vannes.


    * * *

Foi ao entardecer que avistaram os imponentes muros daquela cidade portuária, mas ao contrário de Rieux os subúrbios de Vannes permaneciam cheios de vida.
Naquela noite hospedaram-se numa velha estalagem, no dia seguinte entrariam de novo em Vannes, seria o início do fim daquela aventura, iriam finalmente iniciar a construção do Cogue de Guerra e rumar a casa.

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Eudoxio


Todo o conjunto de determinadas condições (preocupação, angústia, cansaço...) tinham levado Eudóxio a quebrar uma promessa que fizera a si próprio e, já em Vannes, aproveitou a primeira noite após a viagem para afogar suas mágoas e preocupações na bebida. Uma noite nas tavernas é longa, mas ao mesmo tempo curta, pois são horas e horas passadas num misto de transe e de euforia que dão uma sensação de velocidade e de "tempo a correr" e também que calma e de uma noite sem fim... ou pelo menos assim era com Eudóxio.

Mas, repare-se, trata-se de uma troca: uma noite de euforia e de alegria que é paga com um enorme mal-estar no dia seguinte... Isto se tudo correr bem, pois poder-se-iam suceder situações mais embaraçosas como, por exemplo, acordar no dia seguinte num pequeno bote...

***

Parecia-lhe que a cabeça iria explodir a qualquer momento. O simples facto de abrir os olhos era acompanhado por um agravar da dor de cabeça, pelo que se deixou ficar de olhos fechados. O miar das gaivotas ecoava-lhe na mente, juntamente com o som do rebentamento das ondas. Sentia um cheiro a maresia, misturado com um forte odor a álcool. Eudóxio depressa constatou que dormira ali, num pequeno barquito junto à praia, ao relento. Levantou-se a custo, sem reparar nas cordas que se amontoavam a seus pés, tropeçando nelas e caindo à agua. Praguejando, todo encharcado e cheio de dores cabeça, o Monforte avançou até à areia e deixou-se por lá ficar deitado...

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Ana.cat
[Vannes (Gwened)]


Tinham passados alguns dias desde o regresso dos portugueses a Vannes, as tréguas estavam acertadas entre as partes beligerantes do conflito e o seu contingente tinha sido especialmente dispensado do exército pelo Grão-Duque bretão.
"Agora começa uma nova etapa", pensava a Monforte nas docas e de olhos postos n'O Lusitano. O barco do seu irmão estava a ser descarregado com materiais de construção trazidos de Portugal, era o que sobrava dos já retirados à chegada a Vannes.


- Quando irá começar a construção? - perguntou a um dos intendentes responsáveis pelos bens da família na Bretanha.

O homem trajava uma túnica de lã azul que lhe chegava quase aos joelhos e no cinto de pele curtida prendera uma pequena bolsa com ouro.


- Ainda nos falta a permissão grão-ducal minha Senhora, só com ela emitida e nas nossas mãos poderemos iniciar a construção do Cogue. Sabe como é, esta guerra tem focado toda a atenção das autoridades bretãs... - disse ele.

Ana Catarina desviou o olhar da caravela de Kokkas e encarou o intendente nos olhos.

- Esperemos que com estas tréguas o assunto seja resolvido... no entanto recebi notícias de que o Grão-Duque se encontra em Anjou, a restabelecer-se de ferimentos sofridos na defesa de Saumur. Julgo que não voltará tão depressa à Bretanha. - a Monforte suspirou, aquela burocracia estava a queimar-lhe a cabeça há dias, já tinha enviado um pedido, quase uma súplica, ao governo ducal mas ainda estava à espera de resposta.

O intendente concordou com uma expressão facial e afastou-se após pedir permissão. Ana continuou a contemplar o arsenal, a pensar na vida e a imponência do local.


    * * *

Era um mosteiro franciscano, situado fora das muralhas de Vannes tinha o Cardeal-Primaz da Bretanha como seu principal protector, fora ele aliás que concedera a Ana Catarina permissão para o visitar, de outra forma não seria possível a uma mulher, mesmo que nobre, entrar num mosteiro de frades. Tinha uma arquitectura simples mas robusta, o que indicava que aquelas paredes eram antigas.
A Monforte cumprimentou com discrição o abade à entrada, aquele fora-lhe dar as boas vindas e iria indicar-lhe o caminho até à cela de Bernardo.
O chão era pedra nua e a decoração era inexistente, os frades vestiam-se com pobres túnicas castanhas de uma única peça e uma corda em torno da barriga. Ana percorreu os apertados corredores até ser mandada parar pelo abade junto a uma porta de carvalho. O frade que os acompanhava sacou do molho de chaves e abriu a porta.
Dentro da cela Ana necessitou de piscar os olhos para acreditar no que via. Bernardo estava deitado apenas com uma manta de lã sobre o corpo, tinha as faces chupadas e o seu cabelo castanho desalinhado estava excessivamente comprido para o que é normal.
A condessa aproximou-se e tomou a mão do primo, estava pálida, talvez devido à escassa luz que chegava de uma fresta na parede a que chamavam janela. Aquela mão que um dia manejara uma espada com genica era agora um monte de ossos quase sem carne.
Ana puxou de um banco de madeira sem encosto e sentou-se à cabeceira de Bernardo, a figura dele enchia-a de pena, sempre fora um jovem forte e habilidoso, e vê-lo naquela cama, inerte e sem consciência do mundo, entristeceu-a profundamente. Ele era herdeiro da sua linhagem, os Faro de Monforte, fora toda a vida educado para ser um digno Senhor da sua Casa e enquanto tal sempre tinha desempenhado impecavelmente seu papel, era inteligente, carismático e cultivado... o necessário para vingar na vida. Se morresse não deixaria descendência, apesar de estar prometido a uma dama de Montemor Bernardo não tinha filhos, nem bastardos nem reconhecidos. A Monforte sabia que ele estava fraco demais para voltar a Portugal, teria de ali ficar até recuperar, coisa que Ana duvidava que acontecesse, para sua infelicidade. Ela não era médica, mas tinha consciência que o estado do rapaz era crítico e sem grandes esperanças de retorno, estava em coma.


- Será pois Eudóxio... o próximo na sucessão... - e ficou a reflectir naquilo.
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Eudoxio


Em Vannes, Eudóxio ia frequentando as tavernas. Ia bebendo uns copos de Chouchen que lhe iam oferecendo e uma ou outra caneca de cerveja. Apesar de não falar bretão, ia conversando com diversas pessoas, num misto de francês e castelhano. Foi tendo oportunidade de conhecer alguns familiares seus bretões e membros de outras distintas famílias. Ia conhecendo gente simples e pessoas importantes como condes e bispos. Entre elas, numa agradável taverna chamada “Barzh genoù al louarn”, conheceu a Duquesa de Poudouvre. Era bela e simpática e, devido a ter passado algum tempo em Castela, falava castelhano fluentemente, o que contribuiu também para que Eudóxio passasse tanto tempo a falar com ela. Passaram longas tardes a falar sobre os mais variados assuntos. Apesar de ambos falarem castelhano, Eudóxio esforçava-se por manter as conversas em francês, para agradar a encantadora dama. Mais por cavalheiresco do que propriamente por cortejo, pois a Duquesa era casada com o Chanceler da Bretanha, o Duque de Ouessant.

Sabe, é o único português que alguma vez conheci, monsieur – Comentou ela, naquele dia. – Nunca tive o prazer de conhecer mais nenhum. Os seus familiares não aparecem muito pelas tavernas, nem passeiam muito pela cidade…

Não é verdade, ainda hoje estive com alguns numa taverna aqui próxima, se não me engano chamava-se “La Tulipe”. E também já com eles estive nesta mesma taverna. Acontece é que eles andam um pouco mais ocupados do que eu, votre grâce.

Hmm… Nunca quando eu cá estive… Enfim, personne ne m'aime

Isso não é verdade, J’aime vous - respondeu o Monforte.

Sou casada, coquin – respondeu a duquesa, com um largo sorriso.

Eudóxio corou. Ela entendera mal as suas palavras… Mais uma vez as barreiras linguísticas se faziam sentir, e mais se fizeram sentir quando ele tentava, atrapalhado, explicar que não estava a dizer que a amava.

- C’est terrible! Não vejo porque não… Sou bonita, inteligente, simpática, doce, sou apaixonada e boa amante e não sou daquelas mulheres que maçam muito os maridos.

Mas é casada…

Aqui gostamos de praticar um pouco a poligamia… - continuava a sorrir, mas de uma forma sedutora e tinha um intenso brilho nos olhos. Eudóxio não respondeu, ficando a observar as suas belas feições e o seu cabelo ruivo cuidadosamente penteado. Não percebia se ela brincava ou se falava a sério. - Poderia ser o meu segundo marido. Eu poderia até fazer uma divisão da semana, distribuindo os dias entre si e o meu marido. E, quem sabe, até o poderia acompanhar para Portugal… sempre desejei lá ir…

Parece-me bem… Como poderia eu recusar tal oferta? - o Monforte falava já num misto de brincadeira e de seriedade.

A bretã permaneceu calada uns momentos, observando-o. Então, aproximou o seu rosto de Eudóxio.

Beije-me… -murmurou ela. O Monforte atendeu ao pedido, ou pelo menos tentou fazê-lo,mas tal acabou por não se suceder... Quando seus lábios tocavam já nos dela, a duquesa de Poudouvre recuou, nervosa.

Que se passa aqui? – uma voz grave percorreu a taverna. Eudóxio voltou-se e viu o Duque de Ouessant. Sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o corpo. Era uma figura imponente. Alto, forte e com um ar majestoso.

Feche a taverna e saía daqui! – ordenou o Chanceler ao taverneiro e avançou em direcção à sua mulher e ao português.

Ficaram apenas os três na taverna.

Messire - gaguejou o Monforte.

O enorme nobre, desembainhou a espada e encostou-a ao pescoço de Eudóxio.

Não! Não o podes matar! Ele é aliado! É amigo!

Amigos não me roubam a mulher!

Messire, não toquei na sua mulher, não fiz nada…

Desculpa querido, não resisti àquele charme latino…

Eudóxio olhou desesperado para a bretã, sentindo já o aço da espada a cortar-lhe a pele... Ela não estava a ajudar…

Podemos resolver este problema civilizadamente…

O problema é a minha mulher! – suspirou o Chanceler, guardando, para grande alívio do português, a espada. Deu-se então uma discussão entre ele e sua esposa que Eudóxio não compreendeu na totalidade devido à velocidade com que as palavras "voavam". Percebeu, contudo, que a situação da qual acabara de fazer parte não era novidade e que o Duque chegara mesmo a incumbir a um dos seus guardas a tarefa de vigiar a Duquesa. Para seu espanto, viu a bretã convencer o marido que tudo não passara de uma pequena brincadeira e ambos (Duque e Duquesa) se lançaram nos braços um do outro, beijando-se intensamente.

Sentindo-se a mais, e temendo ainda que o Duque de Ouessant pudesse ainda guardar rancores, Eudóxio aproveitou para sair da taverna.

Parece que não é desta que me matam… - sorriu- Tenho mesmo de me deixar desta vida boémia...


FRP:
Por uma questão de respeito não revelei o nome ou o "nickname" dos envolvidos neste pequeno "incidente".

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Ana.cat
[Vannes (Gwened)]


A Monforte tinha regressado do mosteiro, mal entrou na estalagem onde a família estava hospedada perguntou por Eudóxio Amaury à primeira pessoa que encontrou, um dos cavaleiriços trazidos de Alcácer.

- Julgo estar por alguma taverna como é seu hábito, minha Senhora. - disse o cavalariço.

Ana Catarina suspirou de enfado, apesar de adorar o primo e de este lhe ter inclusive salvo a vida em Limosin et La Marche, não gostava nada que ele vagabundeasse pelos tascos como se fosse um plebeu. E agora menos, com Bernardo na situação em que estava era esperada uma atitude mais firme de Eudóxio.

- Procurem-no e tragam-no à minha presença, virem a cidade às avessas se for necessário. Tenho urgência em falar com ele! - ordenou.

Dois guardas partiram imediatamente nos seus cavalos na direcção das docas, a zona da cidade onde se situava o maior número de tavernas. No entanto não foi preciso esperar pelo regresso dos guardas para ela colocar a vista em cima do primo, este chegou à estalagem minutos depois, pela sua expressão parecia ter uma grande história para contar mas Ana não quis saber, dirigiu-se num passe apressado até ele e puxou-o pelo gibão com força, arrastou-o até uma divisão vazia e fê-lo sentar-se. A condessa puxou um banco redondo de três pernas e sentou-se à frente dele. O primo parecia desorientado e a expressão dura de Ana Catarina não ajudava a melhorar o ambiente.
Antes que ele pudesse abrir a boca Ana começou a falar num tom que não admitia interrupções.


- Eudóxio, provavelmente perguntar-te-às porque te trouxe aqui, pois bem, como sabes o teu irmão está naquele mosteiro situado fora do burgo, a situação dele é crítica. Hoje fui vê-lo e meteu-me dó, nunca pensei vê-lo naquele estado... não tivesse eu acompanhado o seu crescimento e sabido que ele é um rapaz forte - a voz da Monforte começou a tremer e por isso ela parou de falar, não queria mostrar fraqueza - É provável que ele não resista muito mais... é triste e injusto, mas é essa a verdade. Cabe-te pois a ti assumir as responsabilidades que estavam a cargo do Bernardo, cabe-te zelar pela honra da tua linhagem, agora mais que nunca os Faro de Monforte precisam de ti e da tua inteligência.

Ana Catarina levantou-se e afastou o banco com o pé, passeou por aquela divisão em círculos pensativos e finalmente pousou o olhar sobre Eudóxio.

- Deixa de frequentar esses sítios por onde tens andado... não é algo que se espera de um herdeiro, muito menos de um fidalgo - o seu tom era duro e cortante mas ela sabia que estava a ser demasiado severa com o rapaz, tentou encontrar um tom mais afável e fez-lhe sinal para se levantar e sair da sala se assim quisesse.

- Podes ir - disse, enquanto mirava a paisagem para lá do vidro sujo de uma janela - Mas tem juízo... quero que amanhã vás visitar o teu irmão, não sei quanto tempo ele irá aguentar, mas sei que não será muito.

Desviou o olhar da janela e deu meia volta, tocou na manga de Eudóxio para lhe fazer dizer que a conversa estava terminada. Ela saiu da divisão e dirigiu-se à porta da rua, sem se virar para trás disse-lhe algo antes de sair.

- Hoje mesmo parto para Roc'han, faz o que te disse... - e saiu
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Eudoxio


Eudóxio escutou, calado. A matriarca Monforte dizia-lhe aquilo que ele mais temia ouvir e que o levara a poucas perguntas sobre o estado do seu irmão ter feito até então: a inevitabilidade e proximidade da morte de Bernardo.

A Condessa de Ourém levantou-se e, após dar alguns passos em silêncio, olhou Eudóxio com um ar grave e sério. O Monforte desviou o olhar e ficou a fitar os próprios pés. Adivinhava o que ela ia dizer. Agora "caindo" sobre si as responsabilidades dos Faro de Monforte que seu irmão tinha, de Eudóxio se esperavam melhores postura e comportamento, dignas de alguém de seu sangue e nome nobres. Ouviu-a, sem nada dizer e sem coragem para a fitar.

- Podes ir. Mas tem juízo... quero que amanhã vás visitar o teu irmão, não sei quanto tempo ele irá aguentar, mas sei que não será muito.

Eudóxio estava numa espécie de transe, tentando ainda assimilar as informações sobre o seu irmão e só quando a Monforte lhe tocou na manga é que ele percebeu que a conversa já estava terminada. Ela saiu e ele ficou sentado e calado, imobilizado pela dura estacada que a vida lhe acabara de infligir...

*

[Dia seguinte]

- Espere aqui fora. - disse Eudóxio, descendo do cavalo, ao guarda que o guiara até ao mosteiro. - Ou volte para trás. Não sei quanto tempo demorarei e sei o caminho de volta.

-Esperarei. Recebi ordens de sua graça, a Condessa de Ourém, para que o guiasse e guardasse.

O Monforte assentiu e avançou em direcção à entrada do mosteiro.

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Ana.cat
[Rohan (Roc'han), a norte de Vannes]


A condessa chegara nessa tarde àquela que segundo ouvira era a capital do Chouchenn na Bretanha. E fora precisamente esse o motivo que a levaram a Roc'han. Enquanto a autorização do conselho ducal não chegava e a construção do Cogue de Guerra não se iniciava Ana decidiu fazer uma espécie de périplo turístico pelo Grão-Ducado. Mas mesmo em tempo de guerra era perigoso viajar nas estradas, em abono da verdade os ladrões eram mais escassos, mas as patrulhas das Hostes eram uma constante e engane-se quem pensar que estas forças eram permissivas para os viajantes, muito menos para os estrangeiros. Ana felizmente tinha um salvo conduto passado pela Duquesa eleita, Marie de Montfort, a esposa do neto do Grão-Duque, mas mesmo com esse documento a condessa não se escapava de alguns sustos. A Bretanha era uma terra rodeada pelo reino francês e para lá do canal as relações com Inglaterra já tinham conhecido melhores dias, diga-se que o apoio declarados dos bretões aos clãs irlandeses e à Escócia não ajudava nada a melhorar as relações entre os dois territórios. Tudo isto gerara nos bretões uma necessidade de se auto-protegerem contra tudo o que era estrangeiro, as leis protegiam-nos de eventuais emigrantes franceses, os exércitos eram outra das facetas dessa necessidade, como diria o poeta, "numa mão a pena e na outra a espada", era assim a Bretanha. Não abdicava do seu poder bélico mas tinha uma diplomacia igualmente eficiente, forjavam alianças com uma facilidade incrível.

Ainda não tinha ela encontrado uma estalagem onde ficar (o que também não a afligia minimamente, uma vez que estando em guerra não haviam tantos viajantes para encherem os quartos) e já se passeava pelo mercado em busca da tão famosa sidra bretã, não a demorou a encontrar, Rohan tinha um mercado rico e atractivo, viam-se imensos mercadores a negociar todo o tipo de bens. A sua dúvida estava agora em encontrar os melhores preços, após uma volta cuidada pelas bancas e entre cotoveladas dos compradores mais impacientes ela lá encontrou o que queria.


- Já viu isto? - perguntou animada ao guarda que a acompanhara ao mercado - Um tonel de sidra por apenas cinquenta e quatro skoeds!

A Monforte contou o ouro que tinha na bolsa, fez as contas à margem de lucro que poderia tirar daquilo e arrependeu-se por não ter trazido mais dinheiro!

- Daou barilhoù, mar plij*- pediu ela com um sorriso de orelha a orelha.
[*Dois barris, por favor]

O vendedor aceitou o dinheiro e só depois deu ordem para entregarem os toneis à Monforte, aquela logo lhes perguntou um local aceitável para dormir, pois seria lá que deveriam deixar os toneis.

- Trugarez vras! - agradeceu ao vendedor, seguindo logo atrás dos empregados daquele até à estalagem recomendada.
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Eudoxio


- Trugarez - agradeceu Eudóxio ao frade que o levara até à cela onde se encontrava Bernardo.

O Monforte respirou fundo, tentando ganhar coragem para o que o esperava, e abriu a porta do pequeno quarto. O seu irmão estava deitado com um ar pálido e fraco. Apesar de o terem avisado do estado de Bernardo, foi para Eudóxio um enorme choque vê-lo naquele estado. Avançou lentamente até ao seu irmão, não conseguindo evitar o derrame de uma lágrima. A gota, aquela pequena porção de sofrimento em forma líquida, percorreu-lhe o rosto e caiu, solitária, sobre o frio chão de pedra. Eudóxio sentou-se no chão e segurou a mão do seu irmão.

-Bernardo... - murmurou, tentando ocultar o sofrimento na voz.

Ficou em silêncio. Queria falar, mas não conseguia... e nem sequer sabia se Bernardo estava a ouvir.

-Lembras-te quando, éramos nós crianças, estivemos ambos doentes e nos obrigaram a ficar na cama? Era inverno e nós fugimos do quarto para brincar ao ar livre... e depois pioramos e tivemos de ficar de cama por vários dias.

Riu-se ao recordar-se daquela história, tinha-a bem viva na sua memória. Servira também como uma de muitas lições de infância...

Passou algumas horas a falar com o seu irmão, principalmente sobre histórias de infância e afins, mas o Sol começava a preparar-se para se retirar, e assim pôr fim ao dia, o que significava que também Eudóxio se tinha de retirar, de volta para Vannes.

Tremiam-lhe as mãos quando saiu do mosteiro e, uma vez mais, esforçava-se por não mostrar fraqueza e transparecer toda a sua dor. O guarda ainda lá se encontrava e dava mostras de ter reparado no seu estado. Preparava-se para dizer ou perguntar algo, mas Eudóxio interrompeu-o:

-Estou bem. Regressemos a Vannes que não tarda anoitecerá.

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Ana.cat
[Rennes (Roazhon), alguns dias depois]


A viagem "turística" da condessa pela Bretanha continuava, agora em Rennes, a capital política do Grão-Ducado.
Na verdade não se poderia chamar àquilo turismo, pelo menos no sentido etimológico que se lhe conhece. Era antes uma tentativa por parte de Ana Catarina para perceber as diferenças internas da Bretanha, as suas instituições politico-administrativas, as suas leis, as suas gentes, resumindo, a sua organização geral.
Sempre acompanhada pelos seus rascunhos a Monforte tirava notas a praticamente tudo o que mexia ou enchia a vista, e aquela visita a Rennes era mesmo para isso, tirar notas, consultar documentos e livros, adquirir conhecimento. Mas de toda a visita a instituição que Ana mais lucrou (intelectualmente) em visitar fora sem dúvida a Harodurez Breizh, a heráldica bretã. Nunca ela tinha visto salões e bibliotecas mais organizados e bem construídos, para não falar dos trabalhos que eram de um conhecimento e de uma mestria impressionantes. Por momentos sentiu-se tentada em adquirir uma casa em Rennes e pedir a cidadania bretã, só por aquela Heráldica valia a pena abdicar de tudo quanto possuía em Portugal, ou pelo menos foi isso que ela pensou naquele momento de delírio.

Passaram os dias e faltava a Ana visitar a última cidade da Bretanha ocidental, a cidade fronteiriça de Fougères, ou Felger em bretão. Seria daquelas que visitou até àquela data a mais dificil de conseguir autorização, pois situava-se às portas da Normandia, um Ducado leal à Coroa de França. Felger era o posto avançado por excelência da defesa de Rennes, e por essa razão mais de metade das forças de defesa bretãs estavam destacadas lá. Mas Ana iria arriscar, custasse o que custasse ela queria visitar Felger, já que era outro centro de produção de sidra.

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Vitor


Era uma madrugada fria. O castelo d'Avintes possuía aposentos amplos e muito ventilados. Acordara de súbito no meio da noite após sonhar com a mãe que a muito não encontrava; beija a face da esposa que ainda dormia e dirige-se ao gabinete de onde se pôs a escrever uma carta aos amados familiares que viam-se distantes de si.

A escassa claridade que uma vela na iminência de acabar proporcionava com a intensa vontade de escrever à mãe eram proporcionais ao passo que algumas palavras sairam rabiscadas enquanto outras precisaram ser reescritas.

Após decorridos três quartos de uma hora a carta descia as escadas efusivamente para acordar o mensageiro que, acostumado a ir se muito até a povoção do Porto, se assutara ao ouvir as palavras À Bretanha, imediatamente. Do pacato vilarejo d'Avintes até os magistrais territórios francófonos, Ludovico, o Mensageiro, passaria por epopéias e desencontros. Ficaria preso em Zaragoza por quinze dias depois de uma briga com um guarda local. Numa pequena vila francesa chamada Labrit ele se veria vítima de bandidos que atentaram contra sua vida enquanto ele atravessa o bosque. Mas o que de facto o atrasaria seria sua estada em La Rochelle onde o amor por uma cortesã o reteria por pouco mais de um mês.

Chegando enfim ao seu destino e após criteriosa procura, encontra o local onde estava hospedada D. Ana Catarina de Monforte e ansioso por retornar a La Rochelle deixa a carta de seu senhor bem como um bilhete escrito por si com um lacaio do lugar e desaparece.

Eis o conteúdo de ambos os documentos:

Quote:

    Feito em Avintes ao trigésimo dia do mês de janeiro de 1460.


    Minha amada mãe,


    Há tempos as saudades de vossa presença atingem-me de modo que me é permitido perceber a vossa importância para mim e para nosso reino. Perdoe-me o modo como escrevo, pois fi-lo em condições desfavoráveis.

    Sinto não ter muito o que contar sobre casa, com certeza terás mais aventuras a contar do que este covarde viajante que vos escreve. Quando já me ia acostumando ao clima de Santo Tirso fui levado a deixá-lo sob os cuidados de um servo fiel e vir residir no castelo d'Avintes. Os aldeões daqui fabricam uma broa de qualidade inigualável da qual precisas provar. Meu casamento é feliz e encho-me de júbilo ao lado de D. Biat que sempre lembra-se de vós com o melhor dos sentimentos. Apesar de ter convidado Frei Arthur para passar uma quinzena ao meu lado de modo a tentar suprir vossa ausência, o velho homem não abandona Ourém sob hipótese alguma, cuja manutenção tem sido fielmente preservada por meu velho tutor.

    Adianto-vos que vosso regresso é ansiosamente aguardado por vossos amigos que aqui permanecem. Enquanto isso, espero que a vossa experiência em além-mar seja proveitosa e vos permita aprofundar vossas capacidades administrativas e de liderança. Igualmente, espero que minha irmã retorne casada pois já vai ficando velha para o matrimónio.


    Do vosso filho que muito vos quer bem,
    Vitor Pio.


Quote:

    Minha senhora,

    Peço que informe ao vosso filho que não pretendo regressar jamais a Portugal. Não o faço por mim por ser covarde e temer o que me possa acontecer.

    O Mensageiro.

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Ana.cat
[Em Fougères (Felger), a norte de Rennes (Roazhon)]


Felger assemelhava-se mais a um mega acampamento militar que a uma cidade propriamente dita. Por onde quer que a Monforte olhasse só via tendas, soldados a tratar dos seus afazeres e estandartes do Grão-Ducado e das suas principais casas senhoriais. A presença de Ana e do seu grupo nos arredores da cidade não foi portanto desvalorizada, naquela zona de risco todos os viajantes eram interpelados sobre as suas intenções, e sendo ela estrangeira não escapou desse interrogatório.
Quando Felger ainda era uma sombra entres os montes verdes do norte da Bretanha o seu grupo foi detectado por batedores que rondavam com frequência os bosques e imediações da cidade fronteiriça. Não foi preciso esperar muito para que uma dezena de cavaleiros bem armados e com faces carregadas os cercassem, exigiam saber as suas intenções. Felizmente que Ana viajava sempre com um bretão contratado que a guiava pelos caminhos e estradas, foi ele que se encarregou de explicar às autoridades o objectivo da presença daquela nobre portuguesa numa cidade em estado de guerra e fechada a estrangeiros. Felizmente a Monforte tinha bons contactos na Bretanha cujas cartas de salvo conduto lhe permitiram romper aquele certo e entrar na cidade de Felger.

Depois de percorridas cerca de duas léguas entre as tendas, sempre acompanhada de perto pelos cavaleiros bretões, Ana atravessou os fortes portões de Felger, dentro da cidade havia menos agitação mas mesmo assim era perceptível a vida e os negócios que os exércitos tinham arrastado até ali. No mercado não faltava armamento de todo o tipo, flechas de várias variedades e qualidades, adagas, espadas longas e de uma mão apenas, escudos redondos de madeira, escudos de aço, elmos e couraças forjadas em diferentes metais, era à escolha do freguês, no entanto os preços eram exorbitantes. Não havia ali qualquer rasto de sidra, a cidade e os seus artesãos trabalhavam incansavelmente para fornecer os materiais necessários aos soldados do outro lado da muralha, não havia tempo nem dinheiro para gastar em bens de luxo supérfluos. Mesmo assim Ana Catarina abriu os cordões à bolsa e comprou uma bela espada, a sua lâmina parecia azul de tão polida, era fina e bem forjada, poderia arrancar um dedo sem dificuldade alguma, estava guarnecida a aço dourado e couro no punho, parecia quase feito de ouro. Por mais algumas moedas a Monforte pediu ao ferreiro que gravasse nela enfeites específicos: um botão com um leão em posição de ataque. A sua anterior espada tinha-se perdido algures nos campos de Limosin et La Marche, mas não sentia grandes remorsos pela perda, era uma espada comum sem grande arte, mas aquela sua nova não... a Monforte decidiu que lhe deveria dar um nome, como faziam os cavaleiros nos antigos romances. Não foi preciso pensar muito, chamou-lhe "Dente-de-leão".


- Um nome que à primeira vista parece inofensivo... talvez até cómico, nada mais errado... - ela sorriu, passou o dedo pelo ângulo da lâmina e sem surpresa fez um corte superficial de onde jorrou solitárias gotas de sangue.

Com um pano a Monforte limpou a espada com cuidado, assim como o seu dedo. Arrecadou Dente-de-leão na sua bainha e dirigiu-se à estalagem onde estava alojada. Com a nova espada a bater-lhe na perna sentiu-se protegida, quem quer que se metesse consigo no futuro iria provar o sabor do seu aço.

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--Gwereg
[Em Gwened (Vannes)]


Na última semana tinha chegado a Vannes a família de Bernardo, voltavam da guerra no sul e foram visitar o familiar ao convento dos franciscanos onde ele ainda recuperava. Gwereg estivera à espera daquele momento para partir para Broceliande, a sua missão estava cumprida, apesar do seu triste fim... Mesmo assim o bretão não partiu, dentro de si tinha algo para dizer aos portugueses, mas não sabia como o fazer, ou como arranjar coragem.
Num dia, estava ele encostado à sombra de uma árvore - a comer uma maçã "extraviada de forma pouco lícita" do mercado - quando viu chegar um grupo de cavaleiros que parou à entrada do mosteiro, o dia não estava ventoso por isso Gwereg não conseguiu distinguir as formas das suas bandeiras, só soube que eram vermelhas e tinham alguma figura animalesca em branco. À cabeça da coluna estava uma mulher, tinha cabelos louros cor de trigo e trajava uma espécie de capa de lã vermelha que lhe chegava aos joelhos e por baixo dela uma reluzente couraça de aço com enfeites nela incrustados. Ela foi recebida pelo abade e após ter dado ordens aos guardas, que ficaram no exterior, entrou no templo e por lá ficou quase uma hora. Saiu da mesma forma como entrou, rápida e sem grandes cerimónias.

    * * *

Ao final da tarde do dia seguinte mais um grupo de cavaleiros chegou ao mosteiro, desta vez liderado por um homem, mais novo que a mulher do outro dia, mas notava-se n'aquel um ar cansado e abatido. Daquela vez conseguiu distinguir as bandeiras: meio leão de prata sobre fundo vermelho e uma combinação qualquer de formas geométricas vermelhas, douradas, prateadas e azuis que Gwereg não sabia atribuir nome, muito menos ler. Apesar disso elas não lhe eram estranhas, por momentos tentou vasculhar nas profundezas das gavetas da sua memória... e encontrou, aquelas armas estavam incrustadas no anel de Bernardo, ele o usara uma vez para selar uma carta quando o encontrou pela primeira vez. Julgou que talvez se tratasse de algum familiar próximo.


- Ar erruout chañsoù...* - murmurou ele.
[* A oportunidade chegou...]

O bretão enfiou a mão dentro da sua capa e verificou se ainda tinha algo com ele. Furtivamente, Gwereg rodeou a guarda e esperou que o fidalgo que havia entrado no mosteiro voltasse. Demorou mais do que estava à espera, mas manteve-se quieto a observar cada movimentação, os guardas nem deram por ele, assim que o seu senhor entrou eles desmontaram e sentaram-se à sombra, encostados à arcada do mosteiro a beber e a conversar.
Depois de largos minutos à espera os soldados levantaram-se atabalhoadamente, e Gwereg viu sair o fidalgo, a sua estadia dentro do mosteiro fez piorar a sua disposição aparentemente, significava aquilo que Bernardo estava pior? Gwereg não sabia responder àquilo, os manjes não o deixavam entrar mais no mosteiro depois de se terem deparado com ele a aplicar aquilo que eles chamavam de "poções demoníacas" (não eram mais que mistelas feitas à base de produtos naturais) a Bernardo, obviamente foi expulso à paulada e só não o denunciaram à inquisição por misericórdia.
Quando o fidalgo tomou as rédeas do cavalo e dizia algo a um dos guardas o bretão ergueu-se de rompante e dirigiu-se ao português, cheio de coragem...


- Sen'hor! Heu... connec'her Berrnarrrdo... heu têr cartha... deh elêh... - balbucionou mostrando uma carta em mau estado que retirara de dentro da capa.
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Ana.cat
[Fougères (Felger)]


Aquele era o último dia de Ana Catarina em Felger, os seus bens já estavam inclusive arrumados na carroça, bastava que a condessa desse sinal aos seus guardas e eles partiriam de imediato, de regresso ao sul, a Rennes. Mas a Monforte decidira partir só à tarde, queria comer algo de jeito que lhe enchesse o estômago e era melhor fazer isso numa cidade grande que na viajem de regresso.
Quando ela se dirigia - vinda das cavalariças - à estalagem onde estava hospedada, para aí tomar a sua refeição, um grupo de batedores entrou a galope pela estrada fora, sem ter o mínimo de cuidado ou atenção a quem circulava a pé, só por sorte ela não foi atropelada por algum daqueles cavalos, se fosse com certeza não teria ficado para contar a história ou resmungar daqueles modos selvagens, como fez logo de seguida.


- Mas que é isto?! Mas eles não vêm que há gente na rua? Que se passa?!! - questionou quando se deparou com soldados, agora a pé, a correr por todos os lados, gritando palavras de ordem à população. Ana não conseguiu perceber o que diziam, mas algo ali estava errado, as pessoas começaram a correr em direcção às suas casas, em pouco tempo estava instalada a confusão.

- Vossa Graça - disse-lhe um dos seus guardas - É melhor entrarmos também, isto não me cheira bem... - concluiu, indicado à condessa o caminho para a estalagem.

Lá dentro Ana procurou em vão o dono do estabelecimento, mas aquele aparentemente estava fora e as suas criadas não sabiam ou não queriam dizer o que estava a acontecer. Ana começou a ficar preocupada, foi então que se lembrou das carroças prontas a partir à entrada das cavalariças.


- Vá desatrelar os cavalos, leve quanta gente quanto precisar, devolva os animais aos estábulos, retire o conteúdo das carroças e leve-os para os nossos aposentos aqui na estalagem... - o guarda fitou-a com um olhar inquisidor, mas Ana não lhe deu espaço para questões - Faça o que digo! Mexa-se por amor a Jah! - exclamou já impaciente com a apatia do homem.

Ele então chamou mais outros dois guardas e saiu da estalagem em direcção às cavalariças, quando a porta se abriu Ana pôde comprovar a barafunda que havia lá fora, soldados por todo o lado, cavalos em êxtase e cavaleiros impacientes.
A condessa permaneceu naquele local por mais algum tempo, o suficiente para testemunhar a chegada do estalajadeiro, um homem calvo de barba grisalha, vinha visivelmente consternado, ainda a deitar os bofes pela boca. Ana quis-lhe dizer algo mas aquele gesticulou que não estava em condições de dizer seja o que fosse, o homem apanhou o primeiro pano que encontrou - aquele com que habitualmente limpava o balcão - e enfiou nele a sua testa em suor. A Monforte fez uma careta àquilo
"Lembrem-me de nunca mais comer nas mesas que este limpar..." pensou.
Quando o homem finalmente se recompôs foi em francês que lhe falou, por saber que o bretão lhe era uma lingua ainda estranha:


- Les français! Ils viennent ici venus de la Normandie, une troupe de trente mille épées, la plupart mercenaires italiens, sous le commandement des armes du Vicomte Namaycush Salmo Salar... Ils viennent des droits à nous!*
[* Os franceses! Eles vêm aí vindos da Normandia, uma tropa de trinta mil espadas, a maioria mercenários italianos, sob o comando das armas do Visconde Namaycush Salmo Salar... vêm direitos a nós!]

A Monforte por momentos pareceu ter perdido o chão que pisava. As tréguas tinham sido assinadas por três meses, aquilo era uma clara violação aos termos acordados! Será que as negociações em Roma tinham descambado? Ela não acreditava nisso, se tal tivesse acontecido já seria do conhecimento de todos. Ela então meditou nas palavras do estalajadeiro - que depois de lhe ter dito aquilo começou a correr pelo estabelecimento a fechar portas e janelas - ela não conhecia esse visconde-general e tão pouco havia ouvido falar dele, mas o facto de ter às suas ordens trinta mil soldados, a maioria mercenários apoquentava-a, os mercenários ainda eram piores que os soldados comuns, esses eram na maior parte das vezes camponeses, pastores, artesãos reclamados pelos seus senhores para darem o seu sangue por quem nem o seu nome conhecia, mas os mercenários não eram assim, eram homens desprovidos de honra, só eram leais ao ouro e não teriam problemas nenhuns em fazer arder cidades inteiras, pilha-las, matar qualquer ser vivo que lhes passasse pela frente e estuprar mulheres ou crianças.
"Trinta mil espadas..." apesar de Felger ser um posto avançado da defesa de Rennes e de alí estarem estacionados três exércitos ela não tinha certeza se o poderio bretão poderia igualar o francês. Pelas suas contas as forças lideradas por Cassius de Montfort não ultrapassavam as vinte mil cabeças, Ana duvidava muito que ele fosse tolo ao ponto de enfrentar o inimigo em campo aberto, o mais provável - e aquilo que estava a acontecer na rua - era que os soldados bretões se refugiassem dentro dos espessos muros de Felger e aí aguardassem reforços dos protectores de Rennes, que não deveriam tardar a ter conhecimento da notícia.
"Ninguém poderá sair ou entrar da cidade agora, incluindo eu...", pensou ela, preocupava-a agora se o cerco se iria arrastar por dias, quiçá semanas ou meses... se se tratasse de um ataque organizado à Bretanha, era bem provável que assim fosse. Decididamente Felger era o último sítio onde ela deveria estar...

- Não deveria ter saído de Gwened! Aff... cabeça dura! - resmungou batendo propositadamente com a testa num pilar.
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Eudoxio


[Gwened (Vannes)]

- Sen'hor! Heu... connec'her Berrnarrrdo... heu têr cartha... deh elêh...

Eudóxio observou o bretão por momentos e pegou na carta que este lhe estendia. Facilmente percebeu que era do seu irmão, pois tinha sido selada com o seu anel. Fitou novamente o bretão, percebendo que se tratava do tal Gwereg que auxiliara Bernardo. Voltou então os olhos para a carta, analisando-a, e mantendo-se em silêncio

- Maria Solis de Bruges Guerra - murmurou, enquanto lia o destinatário da carta e suspirou de tristeza... não seria fácil levar tal carta e tais notícias até à noiva, ou àquela que viria a ser a noiva, se Jah fosse mais justo, do seu irmão...

- Trugarez - agradeceu o Monforte ao bretão e, chamando um dos guardas que, embora fosse português, era de origem bretã e sabia falar a língua daquelas terras, para que traduzisse, prosseguiu - Para todo o sempre terás a minha gratidão e a de meus familiares pela ajuda que prestaste a meu irmão. E nós não nos esquecemos. - curvou a cabeça em sinal de respeito - De hoje em diante e até ao final dos teus dias poderás sempre contar com o respeito e apoio dos Faro de Monforte.

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Ana.cat
[Fougères (Felger)]


Já haviam passado três dias desde o início do cerco a Fougères. Ana Catarina e os seus guardas continuavam dentro dos muros da cidades à espera de algo... do quê? Não sabiam bem...
A condessa não se atrevia sequer a sair da estalagem, as ruas tinham-se tornado perigosas apesar das frequentes patrulhas dos soldados bretões. A criminalidade tinha-se multiplicado assim que os portões da cidade se fecharam, diante de um cerco cuja duração era ainda uma incógnita para todos, muitos populares e gentes sem grandes posses juntavam-se para pilhar o que encontravam, roubar os mercados e outros populares... e por vezes assassinar quem lhes fazia frente.
Por enquanto ainda havia comida na estalagem onde Ana estava alojada, o proprietário já era experiente naqueles tempos de guerra, afinal de contas era bretão! Pelo que ela entendeu qualquer bretão que se preze deve passar por situações como aquela ao longo da sua existência. Afinal, era aquele o preço a pagar pela sua independência e liberdade.

Naquele dia a Monforte juntou-se aos restantes hospedes na sala de jantar da estalagem, o estalajadeiro tinha algo a dizer e aquele era o único sítio suficiente amplo para acolher toda a gente. O homem parecia ter envelhecido dez anos nos últimos dias, os seus olhos estavam encovados de várias noites sem dormir e a sua barba por fazer davam-lhe um ar de velho acabado. No entanto a sua voz ainda tinha colocação e a força que aparentemente lhe faltava de corpo.


- Messieurs - disse ele em francês, já que muitos hospedes eram mercadores dessa nacionalidade - Un pigeon a réussi arriver vif la Fougères avec des nouvelles, par chance ne l'ont pas tué... - era normal os franceses no exterior das muralhas abaterem todas as aves que voavam em direcção a Fougères, para deixar os sitiados sem notícias do que se passava lá fora - Ils sont des bonnes nouvelles, les trêves se maintiennent, cette attaque ne passe pas d'une vengeance enfantine du Vicomt Namaycrush Salmo Salar, son unique désir a été escupir dans ce sol sacré et nous humilier... - a face do homem ficou ruborizada de raiva - Mais il n'aura pas succès! à Rennes il est en train d'être réunies les troupes venues de toute la Bretagne pour mettre fin à cette folie d'un homme, déjà déclaré en dehors de la loi par la propre reine de la France!

[Meus senhores (...) Um pombo conseguiu chegar vivo a Fougères com notícias, por sorte não o mataram... (...) São boas notícias, as tréguas mantêm-se, este ataque não passa de uma vingança infantil do Visconde Namaycrush Salmo Salar, seu único desejo foi cuspir neste solo sagrado e humilhar-nos... (...) Mas não terá sucesso! Em Rennes estão a ser reunidas as tropas vindas de toda a Bretanha para pôr fim a esta loucura de um homem, já declarado fora da lei pela própria rainha de França!]

No fim do estalajadeiro ter falado um ruído de aplausos e apupos misturou-se a sala, ora mostrando apoio às suas palavras ora o seu desprezo pelos invasores. Ana manteve-se calada o tempo todo, como convinha a uma estrangeira cujo país de origem permanecia neutro perante tais acontecimentos - embora esse não fosse bem o caso da Monforte.
Aos poucos a sala foi-se esvaziando, mas ela ficou, queria escutar os relatos de guerras antigas que o estalajadeiro agora contava religiosamente num tom mais sereno (quiçá de nostalgia daqueles tempos difíceis) a quem ficara. O homem relembrou a "Guerra dos Cem Dias", uma das revoltas populares bretãs contra o jugo francês que ocorrera em 1455, não passara de uma pequena escaramuça comparada com a que agora se vivia, durara apenas três meses mas também aí Fougères fora alvo de um cerco pelas tropas francesas.


- Il a été le présage duquel serait pour venir, seulement un an après... - acrescentou num tom profético, com um sorriso doce no rosto.
[Foi o prenúncio do que estaria para vir, apenas um ano depois...]

De facto apenas um ano depois, devido à falta de entendimento nas negociações de paz entre as partes beligerantes na "Guerra dos Cem Dias", o conflito ressurgiu. Os cronistas nunca lhe atribuíram um nome, ficando assim (não) registada como a "Guerra Sem Nome", mas o povo referia-se sempre a ela como a "Guerra da Independência". Meses a fio o Grão-Ducado viu-se atacado por todos os seus vizinhos, quase todas as suas principais cidades caíram, excepto as longínquas cidades do oeste e Rennes, a capital. Vannes caiu, Rieux caiu, Rohan caiu, até Fougères caiu depois de um cerco que durou três meses. Apesar dessas vitórias os franceses não lograram no objectivo principal, tomar a capital que se manteve inexpugnável aos incessantes ataques. Com o tempo algumas províncias feudatárias da Coroa foram desmobilizando e as vitórias bretãs consolidaram-se no terreno, conduzindo às negociações de paz que culminaram com o Tratado do Monte de São Miguel, no qual a coroa francesa reconhecia finalmente a independência do Grão-Ducado da Bretanha.
Muitas histórias, canções e crónicas haviam sobre esse conflito épico mas nem mesmo elas se poderiam alguma vez comparar, no imaginário e orgulho dos bretões, à celebre tomada do castelo da arqui-rival Normandia na batalha de São Martim, ocorrida três anos antes a 30 de Janeiro de 1453. Ela era relembrada no calendário cultural dos bretãos, sendo até mais festejada que a assinatura do tratado que lhes deu a independência.

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