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Malo Mori Quam Foedari (Antes a Morte que a Desonra)

Ana.cat
[Fevereiro - Algures no Golfo de Biscaia]


No castelo da popa o forte vento batia frio e implacável nas faces rosadas da Monforte.
Ana Catarina estava bem agasalhada com peles e lãs quanto baste, apesar disso sentia-se gelada e entorpecida, os ventos frios não cessavam e a sua força aliada à direcção pouco consistente atrapalhavam as manobras do Arminho. No mesmo dia tanto podiam ter umas horas de ventos favoráveis como em escassos momentos esses ventos tomavam outra direcção e desencaminhavam o enorme navio de guerra da sua rota. A cada dia que passavam no alto mar mais se distanciavam do Lusitano comandando por Kokkas.


- Estas velas quadradas... a minha vontade era rasga-las ao meio e fazer duas latinas! - resmungava frequentemente a Monforte, ao ponto de se tornar maçadora para quem a acompanhava.

- Vossa graça - era um marinheiro - o capitão Hijacker vai-se retirar para a sua camarata, pediu-me para a avisar disso, para que podeis tomar o seu lugar no turno da noite.

A Monforte encarou o jovem moço, tremia que nem varas verdes com o vento forte e gélido a bater-lhe no peito quase descoberto, protegido por uma camisa de lã gasta e pouco útil para aquele tempo agreste.

- Vou já, ajudai-me a descer que este frio deixa-me os ossos entorpecidos! E a idade também não ajuda nada... - acrescentou num suspiro.

Os dois desceram do castelo da popa e estacaram diante da cabine do capitão, aí o marujo foi dispensado e voltou para os seus trabalhos a bordo, já a Monforte entrou na cabine e debruçou-se sobre a mesa dos mapas, iluminada por duas lamparinas de azeite.
A condessa puxou um dos mapas para si e baixou a lamparina pois a noite já começava a cair e ali a luz era escassa. Pelos seus calculos o Arminho estaria algures no meio do Golfo de Biscaia, apesar de não saber ao certo a posição do navio sabia qual a direcção a seguir: sudoeste, sempre sudoeste até avistarem a costa galega.
Por mais alguns momentos a Monforte continuou no gabinete a comparar mapas e a tirar apontamentos sobre as condições atmosféricas, os ventos, o ciclo da lua e a posição dos astros. Finalmente estava a fazer uso dos conhecimentos de astronomia que adquirira antes da viagem através de velhas sebentas manuscritas referentes aos tratados dos grandes mestres gregos.
Quando a noite já ia alta decidiu sair da cabine para espreitar o céu, estava algo nebuloso, mas a estrela polar era visível. Com o auxílio de um marinheiro que elevou o quadrante ao nível da cabeça e o apontou na direcção daquele luminoso astro, a Monforte rabiscou mais algumas notas que lhe davam mais garantias das posição do navio e das suas coordenadas.


- Ainda estamos longe... temo que só daqui a cinco ou sete dias avistaremos a costa da Galiza ou na pior das hipóteses, as Astúrias.

A resignação era visível na face da condessa, aquele de facto não era um navio para grandes viagens ou travessias, o seu destino era outro... ela sabia isso.
E horas depois, quando o imediato surgiu para receber as ordens, estas foram-lhe transmitidas e a Monforte tomou a pena e o pergaminho nas mãos pela última vez. N'ele escreveu um apressado recado para Hijacker, que iria tomar o seu posto, mal a manhã despontasse:


Quote:

    Capitão,

    Deixei assinalada no mapa a nossa provável localização.
    P'los meus cálculos devemos estar entre X = 188 / Y = 91 e X = 190 / Y = 93.

    Já perdemos o Lusitano de vista.



E nas costas da nota outro rascunho era perceptível:

Quote:

    No mar revolto eles se ousaram lançar,
    Co a esperança de à ingrata terra regressar.
    P'la Honra em terra remota foram lutar,
    Para os ancestrais laços de sangue dignificar.


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Hijacker
Os primeiros raios de sol começaram a raiar pelo céu azul, a madrugada de um novo dia estava ai.

No seu camarote Hijacker é acordado pelo calor dos raios de sol na face, este abre um olho e deslumbra a madrugada luminosa e solarenga que este novo dia trazia.

Calmamente levantou se vestiu se e saiu em direcção ao convés. No convés pode finalmente avaliar a verdadeira situação atmosférica desse dia. Apesar do dia solarengo o mais importante, o vento, não estava tanto de feição quanto o desejado era fraco e soprava em diversas direcções.

Um marinheiro veio direito a Hijacker e entregou lhe o recado que a Ana lhe deixara
. Obrigado, existe mais alguma alguma situação que deva ter conhecimento? O Jovem marinheiro acenou a cabeça. Muito bem vou para a cabine do capitão caso precisem de mim.

Hijacker subiu um pouco no mastro para ter uma vista panorâmica e em todo o seu redor esplendoroso só se avistava o imenso oceano. Não havia qualquer sinal de terra ou indicio da mesma, nem uma gaivota mais perdida se avistava. Descendo Hijacker dirige se para a cabine para analisar a rota.

Pegando no recado de Ana lê-o. Depois de identificar as coordenadas que Ana lhe assinalara fica um pouco apreensivo... Voltando o bilhete ao contrário continua a ler pensando ser mais informação da rota.

Após se aperceber que não o era e ler o inspirador poema de Ana, Hijacker não pode de deixar de sorrir, era deveras inspirador o seu poema.


Com uma energia renovada, Hijacker analisa a carta de ventos, e vendo que as coordenadas que Ana tinha deixado era provavelmente muito precisas, pegando depois na cartas das correntes Hijacker vê que muitas pessoas assinalavam uma corrente forte que costumava correr em direcção a sul, decide que hoje iriam tentar de tudo para avançar o máximo possível, nem que fosse mais para sul, era preciso explorar em conjunto com o vento que se sentia e a corrente . Voltando ao convés grita para a tripulação.

Atenção a todos, quero a vela principal toda bem aberta e esticada mais do lado direito que do esquerdo, deixem uma folga de 4 nós à esquerda e totalmente esticada na direita, temos de aproveitar ao máximo as rajadas de vendo que nos empurrem para Oeste, e quero a vela da popa toda recolhida!!


E dito isto Hijacker sobe para junto do leme e roda-o com toda a energia fazendo o barco rumar mais a sul que sudoeste. Agora só esperando para ver qual seria o desfecho daquela arrojada manobra.

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Ana.cat
As tempestades tinham chegado para ficar.
Na sua cabina húmida e gelada Ana Catarina fazia o que podia com os parcos recursos que tinha para se manter minimamente quente. Deixara de subir ao exterior do navio desde que apanhara um resfriado que ainda a mantinha recolhida na sua cabine mas nem por isso não deixava de se sentir indisposta com o constante balançar do Arminho. No entanto nem tudo era mau, a condessa aproveitava os momentos mortos daqueles dias para catalogar e arrumar os livros e todo o tipo de materiais que tinha adquirido na Bretanha e em França.
Naquele dia debruçou-se sobre um pequeno livro das horas - pensava ela que era isso que se tratava - recolhido de um vagabundo nas vésperas da saída de Vannes. O seu aspecto simples e usado não lhe despertara a curiosidade até então, mas sendo um dos últimos que restavam ainda por registar decidiu averiguar o seu estado de conservação.
Folheou-o rapidamente para verificar a fragilidade das páginas, estavam húmidas - como tudo naquele barco, diga-se - e algumas delas pegadas. Com cuidado a Monforte pegou numa adaga e reabriu o livro nas primeiras folhas, despegando-as com cuidado umas das outras. Enquanto fazia isso passou os olhos pelo seu conteúdo, as primeiras páginas só tinham texto manuscrito e nalgumas partes borratado numa língua semelhante ao bretão. Mas foi só quando descobriu as discretas iluminuras que acompanhavam o corpo do texto que percebeu que não se tratava de um livro religioso, mas sim de um género de crónicas, isso deixou-a intrigada e fê-la redobrar a atenção para o texto e para as imagens. Numa delas era mostrado um escudo de armas que ela reconheceu como sendo provavelmente proveniente das ilhas britânicas, o que corroborava a sua suposição do texto estar num idioma de origem celta, talvez galês ou córnico.
À medida que explorava o pequeno livro sentia-se mais ansiosa, não tanto pelo conteúdo do texto - que não compreendia - mas pelas iluminuras. A maioria tinha perdido a cor, sobrando apenas as sombras ou limites das imagens, mas mesmo assim a Monforte conseguiu perceber o sentido da história que era contada, uma história que de maneira nenhuma lhe era indiferente.


- Eleanor... - desviou o olhar do livro e fitou o horizonte negro da sua janela - Eleanor, a jovem... do sangue real dos Plantageneta - Ana Catarina fechou o livro com o seu dedo a marcar a página e tentou encontrar nas suas memórias a emaranhada genealogia daquela dinastia inglesa, haviam várias mas nenhuma lhe fazia sentido ali, a não ser que aquelas crónicas retratassem os feitos não da família real inglesa mas de algum grande senhor que eventualmente tenha desposado alguma filha de um ramo cadete da família.

- Esquartelado... ouro e... gules... quatro leões passant alternados do mesmo... ou serão leopardos...? - a Monforte tinha dificuldade em distinguir as cores e o desenho, a luz fraca aliada ao mau estado de preservação da página tornavam a tarefa de ler o armorial bastante exigente. A condessa tomou uma folha limpa e tentou replicar o desenho do escudo que tinha à sua frente, de seguida levantou-se e procurou entre os livros já inventariados os que continham armoriais da Europa central e Ilhas britânicas.
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Ana.cat
[Horas depois]


A madrugada já espreitava para lá do vidro da sua camarata, a noite já ia longa e tão cedo a manhã iria emergir para lhe tomar o lugar. Ana Catarina continuava com a cabeça enfiada nos seus velhos livros em busca da descrição daquele escudo, sentia já o pó e o mofo a subir-lhe pelas narinas e a sonolência por eles provocada retiravam-lhe as forças até que a visão do tão procurado escudo lhe passou pela frente. A condessa estremeceu pensando que estaria a sonhar acordada e levou as mãos aos olhos para os esfregar. Sentia-se agora quase revigorada, já nem o mofo a incomodava! Puxando as lunetas para a ponta do nariz e aproximando a lamparina de azeite do livro ela observou o escudo com mais atenção, fora desenhado apenas com tinta castanha escura e a única forma possível de descobrir as cores era a partir do seu código clássico, pontilhado para o ouro e linhas verticais para o gules.

- Llywelyn Fawr... écartelé d’or et de gueules, à quatre lions de l’un à l'autre armés et lampassés d’azur - leu a descrição - É galês... o escudo é galês.

Aquela descoberta conduziu-a a uma teoria, na sua cabeça fazia algum sentido e encaixava-se com o que até então tinha descoberto. Apesar de desconfiar que aquele não seria o mesmo Llywelyn - pois vivera cerca de cento e cinquenta anos além da sua teoria - havia realmente uma ligação recente entre um Llywelyn de Gales e uma Eleanor Plantageneta... ou Montfort. A filha de Simon V de Montfort e de uma outra Eleanor Plantageneta casara com um senhor galês, era uma história bem conhecida na sua família, apesar de se saberem poucos pormenores dela, mas só agora fazia sentido a utilização do apelido materno para designar aquela Eleanor, princesa de Gales, afinal os Plantageneta eram uma das famílias mais poderosas da Europa de então, com sangue real em mais que uma nação, fazia todo o sentido enaltecer o sangue mais nobre daquela Eleanor.
Ana Catarina sorriu para si própria, e para a sua descoberta. Tantas horas de pesquisa tinham valido a pena, e apesar do cansaço que a consumia decidiu continuar a descoberta daquele livro que se revelara uma verdadeira surpresa e encantamento para os seus olhos. O sol já espreitava entre as águas geladas da rochosa costa galega, Ana continuou a folhear o livro e a tirar apontamentos acerca das iluminuras que ia vendo, recriando algumas para possíveis usos futuros, até que uma lhe despertou ainda mais a sua atenção, era o ouro sobre azul, confirmava - como se ainda lhe restassem dúvidas - a sua teoria. Naquela iluminura fora desenhado um casal com vestes ricas e ornamentadas da época, partilhavam um cálice (símbolo clássico do matrimónio), e sobre as suas cabeças pendiam dois escudos: sobre o esposo fora repetido o escudo de Llywelyn Fawr, sobre a sua consorte constava um escudo partido de gules com um leão de prata de Montfort à direita e as armas dos Plantagenetas à esquerda. Estava definitivamente encontrada a verdadeira Eleanor!


- Mas... - Ana pousou a cabeça sobre o punho fechado... sentia o sono a dominar-lhe as pálpebras - Aquele vagabundo...? - ela não conseguia perceber porque o livro estava na posse do vagabundo bretão, isso ainda era uma incógnita.

Determinada a concluir o que tinha começado a condessa continuou a passar as páginas e a tirar notas das últimas páginas, apesar de com muito menos vigor que tinha começado. Quando chegou finalmente ao fim foi com surpresa que encontrou uma página avulsa presa ao livro, estava escrita também, mas a letra era diferente, mais descuidada. Sem grande esperança de entender o seu significado e com mais vontade de ir dormir que continuar a trabalhar, ela deu uma olhadela rápida pelo texto, assemelhava-se a uma exposição genealógica e estava em bretão. Decidiu ler de novo, mas agora com atenção, quando terminou ergueu a cabeça e enfrentou o sol que se erguia por trás da paisagem galega, estava estupefacta.
--Fernao_o_guarda




- Quantos dias mais? - queixava-se um dos soldados sobreviventes no conflito - Este frio parece que se entranha nos ossos... e o balanço do navio, já não o suporto...

- Diz-se que vamos parar no Porto para abastecer... tomara que sim, não há coisa melhor que sentir a terra debaixo dos pés.

Fernão, um dos oficiais da guarda doméstica dos Monforte, assistia e ouvia todos os lamentos no seu canto. Com o seu habitual semblante carregado e distante ninguém se atrevia a dirigir-lhe a palavra, mas aos poucos o incómodo causado pela sua presença foi substituído por uma indiferença, ainda que disfarçada.
O velho soldado não era homem de beber ou de frequentar tavernas, mas o estado do tempo e a mobilidade limitada dentro do barco não lhe davam grandes alternativas. A cerveja aquecia-lhe o corpo e afastava o frio que se fazia sentir há vários dias.


- Meias estações - sussurrou ele - Nunca são boas alturas para se fazer ao mar, os ventos são instáveis, as tempestades frequentes e as águas estão em tumulto, desejosas por engolir marinheiros pouco precavidos...

O seu monólogo calou a messe, os restantes soldados entre-olharam-se com os rostos repletos de ansiedade. Fernão tinha visto muito, aprendera a ir mais além das expressões faciais superficiais, aprendera a ler o medo a partir dos olhos dos homens. E era isso mesmo que ele via em todos aqueles veteranos de guerra, eram sobreviventes dos campos de batalha, homens treinados com a espada e a lança, a dor não lhes era estranha... mas não eram marinheiros. Temiam mais o mar que o demónio, raramente subiam para enfrentar o tempo exterior, tinham pavor, Fernão percebera isso desde o início, desde a viajem de ida para a Bretanha.

Um dos jovens olhou-o inquieto, parecia amedrontado com as suas palavras, tanto ou mais que o medo que sentia pelas profundezas daquele oceano que rasgavam há dias.


- Acha que vamos morrer? - perguntou ele numa voz tímida.

Fernão tinha os olhos postos na sua caneca, levou-a à boca e engoliu devagar a cerveja quase colhada que lhe restava, e sem levantar os olhos na direcção do rapaz, respondeu-lhe num murmúrio:


- Não.

O jovem não pareceu satisfeito com uma resposta tão parca de conteúdo.

- Aqueles ratos de porão dizem que perdemos o contacto com a nau do conde há quatro dias! Só a partir de ontem alcançámos a costa da Galiza, mas este mar parece que nos vai empurrar na direcção das rochas a qualquer momento! A comida escasseia, enquanto os senhores se empanturram com aves e nacos gordurosos de carne a nós só nos dão bolachas duras repletas de vermes e carne seca! Todos os dias morre alguém de frio, doença, feridas mal saradas... ou empurrados pelo vento! Tem mesmo a certeza disso?

Fernão ergueu o olhar e encarou o jovem assustado, o medo dele era contagiante, mas isso não o atingiu. Levou os dedos à barba desgrenhada e mal tratada e disse-lhe, num tom sussurrante ainda mais sombrio.

- Já passei pior que isto rapaz, e tu também. Sobreviveste a uma marcha ineterrupta de duas semanas a um ritmo imposto por cavalos, sobreviveste a batalhas e escaramuças, aguentaste a vida desgastante de acampamento, sempre com a incerteza do dia seguinte, não foste atingido por praga alguma, nem perdeste nenhum membro. Achas que isto é pior que a guerra? Não, isto é igual... a vida é uma guerra, a vida é um barco à deriva. Só te resta resignar a isso e resistir, sobreviver.

Todos se calaram, o jovem soldado olhou incrédulo para o superior que tinha à sua frente, mas mais nada disse. Nem Fernão não abriu mais a boca nesse dia.
Ana.cat
As tempestades tinham acalmado nos últimos dois dias. Ana Catarina já podia subir de vez em quando para ver o sol, ainda que este raramente se mostrasse pois o céu continuava muito nublado e os aguaceiros, ainda que fracos, eram uma constante. A temperatura também tinha subido, embora o frio continuasse a marcar presença, deixando mais de metade da tripulação arrecadada junto às poucas fontes de calor que existiam.
Naquele dia Ana subira ao castelo da popa para acompanhar a trajectória do navio e concluir os apontamentos que tinha começado antes da terrível tempestade que tinha caído sobre eles.
A Monforte desenrolou o pedaço de couro onde começara a desenhar a costa da ida para a Bretanha e estendeu-o na mesa. Ali esteve quase uma hora a fazer comparações e a tirar apontamentos, não era um trabalho perfeito, mas ela estava orgulhosa do resultado, conseguira desenhar um mapa de toda a costa ocidental da península Ibérica e ainda a costa sul da península bretã.
Realizada a tarefa ela decidiu voltar para o seu compartimento, enrolou-se à volta das suas peles e saiu do gabinete em passo quase de corrida. No convés deparou-se com Fernão, o velho oficial da guarda da sua família.


- Bom Fernão - cumprimentou-o - Que fazeis aqui ao frio? - o tom respeitoso da condessa denunciava a admiração que tinha por aquele idoso.

O velho soldado, que fitava o mar quando ela o cumprimentara, pareceu surpreendido com com a presença da Monforte.


- Minha senhora! - dobrou-se numa vénia quase impossível para a sua idade - A vossa presença surpreende-me - o velho esboçou um sorriso sincero, só ela para lhos arrancar - Estava pois a purificar-me com este ar e vento gélido vossa graça, o ambiente lá em baixo é abafado e doentio... e agora que o tempo melhorou, decidi vir espreitar o sol - Fernão olhou para o céu em busca dele, mas não o encontrou - Mas parece que ele está tímido hoje...

Ana sorriu àquilo, a genuinidade daquele homem sempre a impressionou, conhecia-o desde sempre, em criança atormentava-o com as suas brincadeiras pouco dignas para uma pequena dama, já nessa altura ele era um homem rígido e sisudo.

- Acompanhe-me para dentro que este frio não nos pode fazer bem - disse ela entre arrepios provocados pelo frio - Em breve avistaremos o Porto, pelas anotações de Hijacker estaremos a menos de três dias de lá... suponho que o meu irmão já esteja a ancorar por lá, ele há-de esperar por nós...

O velho soldado nada respondeu, seguia impassível com uma candeia na mão para iluminar o caminho dentro do navio.

- Diga-me - ela quebrou o silêncio - Como está a moral dos tripulantes?

Fernão estancou de repente e encarou-a de sobrancelha arqueada.

- Eles estão cansados. A guerra foi dura, viram morrer amigos, familiares, meros desconhecidos... mas o mar é diferente da guerra, é imenso e não tem para onde fugir. A comida que lhes servem raramente lhes agrada e a cerveja é grumosa, de má qualidade. Segreda-se que os senhores desviam a melhor comida e se empanturram até amanhecer...

Ana sempre apreciara a honestidade daquele homem, mas naquele momento teria preferido que ele tivesse mentido e dito que "eles estão moralizados e orgulhosos por estarem ao vosso serviço", aquela realidade, explicada de uma forma tão crua, deixavam-na perplexa e irritada, talvez mais irritada com Fernão que com a tripulação.

- Achais que eles...?

- Não - ele cortou o seu pensamento de imediato - Falta-lhes liderança para tal, mas aconselho-vos a fazer algo, libertai alguns barris de melhor qualidade, duplicai-lhes a ração... eles logo se esquecerão dos impropérios que soltaram contra vós.

Desta vez foi a condessa que permaneceu pensativa, sabia perfeitamente que aquelas suspeitas não eram justificadas, apesar de ela não negar que comia bem às refeições as acusações eram sobejamente exageradas, e mesmo que existissem desvios nas cozinhas ou no porão esses desvios eram residuais, cuja origem era de difícil localização.

- Irei tratar disso - disse por fim, antes de se despedir de Fernão e se refugiar na sua cabine.
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Fernao.barreto



O sol ainda não se tinha erguido totalmente no horizonte quando Fernão subiu ao convés do Arminho. Debruçado sobre a amurada o velho observou fascinado a contra-luz do amanhecer sobre a paisagem verdejante do Minho. Já estavam em águas portuguesas e em breve alcançariam o Porto para reabastecer e voltar a pisar solo pátrio, como era desejo de todos.
Revigorado com tamanha beleza o oficial abriu os braços e esticou-os numa espécie de espreguiço ou exercício matinal, estava pois preparado para enfrentar o dia nas entranhas escuras e abafadas do Arminho.
Descendo a escadaria, Fernão dirigiu-se à pequena camarata que partilhava com o sobrinho-neto, um dos escudeiros da família de sua Senhoria, e como seria de esperar ainda estava enfiado dentro dos cobertores a dormir que nem uma pedra. Fernão estreitou a boca e arqueou as sobrancelhas à preguiça do jovem Alberto, aquele moço desde sempre lhe fora um cabo de trabalhos, por servir a filha da condessa e por a primeira ter alguma consideração e apreço por ele julgava-se mais importante do que realmente era, a sua arrogância e imprudência crescia a olhos vistos, e Fernão não gostava nada daquilo. Sem fazer um único ruído o velho pegou na bainha da sua espada e bateu com ela nas costas do rapaz com a violência estritamente necessária para o fazer acordar com um único golpe.


- Ahhhhhh!!! - gritou ele enquanto se contorcia dentro dos cobertores de lã - Mas quem ousa?! - sentado na cama e com o cabelo em completo desalinho o jovem encarou o seu agressor com uma cara pejada de indignação e sono.

- Quem ousa perguntas tu?! - a voz de Fernão era puro aço sobre o carácter amanteigado de Alberto - O sol já nasceu, metade da tripulação está de pé a trabalhar, e tu não vais continuar a dormir, isso te garanto. Veste-te e vai servir a tua Senhora, é para isso que estás ao seu serviço, honra as nossas cores!

O sono tinha abandonado o rosto de Alberto, substituindo-o por uma perigosa mistura de prepotência e raiva.

- A Johanna ainda não está a pé, ela só se costuma levantar ao final da manhã, tio! Para que me serve levantar agora se só entrarei ao serviço daqui a mais de quatro horas?!

Uma veia saliente surgiu no pescoço de Fernão, era o sinal inequívoco que o sobrinho estava a testar os seus limites. O velho oficial agarrou o jovem pelo braço obrigando-o a levantar-se e atirou-o contra a parede de madeira da camarata.

- Antes de mais não me diriges a palavra nesse tom! Nem te irás referir à tua Senhora nesses tratamentos familiares, estás aqui para a servir e não para ser seu íntimo, por último, se não tens o que fazer até ao final da manhã eu te ei-de arranjar trabalho, nem que tenha que te mandar lá para cima arrear as velas! Estamos entendidos?!

Os frios olhos de Fernão fitavam com intensidade os amendoados olhos castanhos de Alberto com uma assertividade demolidora.

- Estamos entendidos?! - rosnou novamente perante o silêncio do sobrinho.

O jovem escudeiro desviou o olhar e murmurou algo em resposta, mas antes que Fernão se virasse para retornar aos seus afazeres Alberto tomou a palavra, desta vez com mais convicção na voz:


- O que é que fizemos para merecer esta humilhação, tio? Porque é que nos colocam ao mesmo patamar de gente sem nome nem feitos ancestrais de que se podem glorificar? Nós temos sangue nobre tio, somos uma linhagem antiga com feitos mais antigos que os deles, quando eles cá chegaram já os Barreto eram conhecidos pelas suas façanhas e coragem em combate! Isso não vale nada?!

Fernão calou-se por momentos, deixou o sobrinho soltar toda a sua frustração pela sua condição, quando se virou totalmente para Alberto a característica frieza do oficial quase não se notava, via-se apenas um homem velho e esgotado. Sentia que devia explicações ao sobrinho, talvez isso aliviasse a sua indignação.

- Senta-te - pediu; Alberto obedeceu e sentou-se no seu colchão de palha, Fernão seguiu-lhe o exemplo e puxou um mocho para se sentar - Meu jovem, quando a minha prima, a única filha dos Senhor dos Barreto, se uniu em matrimónio com o Senhor Jean Simão pelos motivos que tens conhecimento eu não tinha mais de sete anos, o meu irmão e vosso avó teria treze... éramos ambos filhos de um ramo cadete e empobrecido dos Barreto e por isso fomos escolhidos para acompanhar e servir a senhora nossa prima como escudeiro, tal como tu... como vês, a nossa ascendência não é assim tão nobre como tão orgulhosamente afirmas. Somos Barretos é verdade, devemos honrar o nosso nome e os feitos dos nossos antepassados, que tão ferozmente pelejaram para alargar o território a sul de Portugal... no entanto não podemos viver dos feitos do passado, temos que trilhar o nosso próprio caminho, se tivermos que servir outros Senhores, então que assim seja, que lhes sejamos leais - levantou-se e alisou a túnica branca semeada de mosquetas de arminho - Cumpre bem o teu dever, um dia serás recompensado por isso... - Fernão olhou em redor e acrescentou antes de sair - Enquanto a tua Senhora não se levanta prepara as nossas coisas, em breve avistaremos o Porto, temos que ter tudo pronto.

O sobrinho acenou cabisbaixo, Fernão sentiu pena dele, não estava de modo nenhum preparado para enfrentar a vida.
Enquanto se dirigia para o seu serviço, na sala das armas do navio, dois marinheiros passaram por ele a fazer rolar pelo chão um barril cada, por pouco Fernão não foi pisado por um deles.



[Horas depois]


Tinha soado o sino a anunciar o almoço, Fernão baixou a pena e arrumou os papéis que estava a tratar relativos aos inventários de armas que o navio transportava, era um trabalho bastante burocrático que o oficial preferiria não fazer, mas a que raramente se escapava.
O velho Barreto levou o seu toque à cabeça, a esconder a falta de cabelos, e dirigiu-se à messe para aí comer a sua refeição. Quando aí chegou sentiu que esta estava mais cheia e barulhenta do que era normal, por todos os lados se viam soldados e marinheiros a cantar e a beber alegremente, uma visão bem diferente dos últimos dias. Entre pisadelas e cotuveladas, Fernão lutou para chegar ao balcão do taverneiro de serviço.


- A minha dose diária - ordenou ao homem por trás do balcão, um marinheiro roto e sujo, com a testa e bochechas encarnadas, provavelmente de vinho ou calor - E diga-me o que se passa aqui.

O taverneiro gesticulou-lhe tentando passar a mensagem que já lhe respondia e foi buscar a dose do oficial. Quando Fernão a viu estranhou tamanha generosidade e olhou desconfiado o taverneiro.

- Por vontade da condessa, as doses foram duplicadas, senhor... assim como a cerveja, foram libertados dois barris de sidra bretã, eles celebram e bebem à sua saúde - sorriu.

Fernão ficou mais sossegado e feliz por a sua Senhora ter seguido o seu conselho... a insatisfação da tripulação já não era um problema para ele, mas talvez fosse para os grumetes que teriam muito mais vómito e urina para limpar.
Ana.cat
[Cidade do Porto]


Finalmente voltavam a pisar terra firme. Ana Catarina sentia-se revigorada só por conseguir caminhar sem balanços nem dormir num compartimento húmido e frio. Definitivamente a vida de alto-mar não era para si.

- Será que o teu irmão está na cidade? - perguntou a Johanna quando ambas passeavam pelo mercado em busca de nada, apenas para passarem o tempo morto que o abastecimento do barco requeria - É tarde para o avisar agora, o tempo não corre a nosso favor. Temos que embarcar entretanto, pois a tripulação do Lusitano já está aqui há demasiado tempo à nossa espera - sorriu - Também não quero que ele venha ter connosco despreparado, sabe Jah como são as perigosas as estradas deste Reino.

Johanna não a pareceu ouvir, a jovem fidalga passeava-se de banca em banca a ver roupas e acessórios. A condessa já desistira de chamar a atenção da filha para as coisas importantes da vida, e de lhe fazer reprimendas por apenas ter interesse nas fúteis.

- Vamos voltar - ordenou, puxando pelo braço da filha - Abram caminho - pediu aos guardas que as acompanhavam - Já gastaste mais do que suficiente por hoje...

Johanna pareceu indignada com a falta de sensibilidade da mãe, mas nada pode dizer pois Ana Catarina lançou-lhe um olhar cortante que dispensava quaisquer comentários.

Nas docas os marinheiros ocupavam-se a empurrar barris ou fardos rampa acima, já os soldados esses não esperaram sequer que se fizesse escuro para procurarem por casas de má fama ou tavernas onde se pudessem entreter.


- Zarpamos amanhã ao que tudo indica... - aquilo fê-la sentir-se melhor, mas não era o mar que provocava esse efeito, era sim a vontade de rever a sua terra natal e n'ela repousar depois de uma dura jornada.
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Alberto.barreto



Depois do passeio da sua Senhora o jovem Barreto encostou-se à amurada do Arminho, o seu olhar recaia sobre o granítico casario do Porto. Sentia algo especial por estar naquela cidade, afinal os seus antepassados tinham estabelecido raízes naquela zona há mais de três séculos. Hoje poucos eram os Barretos que restavam, na verdade Alberto só conhecia o seu tio. "Um dia os arminhos voltarão a flutuar como outrora" pensava ele distraído de tudo o que o rodeava, "um dia serei cavaleiro ou senhor, e vou recuperar o que é nosso por direito!".
Aqueles pensamentos reconfortavam-no e faziam-lhe esquecer a sua situação de simples servidor de uma linhagem mais nobre que a sua.


- Não tens serviço para cumprir? - exclamou uma voz familiar nas suas costas.

Alberto virou-se e encarou, como já esperava, o olhar sempre descontente do tio-avô.


- A Senhora Johanna dispensou-me tio. Chegámos à pouco do mercado - acrescentou num tom cansado daquilo que considerava perseguição por parte do velho Barreto.

O oficial estreitou a boca num trejeito retorcido e pousou a mão no punho da espada.

- Pois bem, então vai ajudar a carregar o que resta dos mantimentos, quando tiveres concluído esse serviço vem ter comigo, quero ter uma conversa contigo.

O jovem Barreto bufou de impaciência, estava farto de ser tratado como um mero serviçal, ele era um Barreto, ora! O seu tio pareceu ter percebido razão da sua reacção, era impossível esconder-lhe o quer que fosse.

- É por isso mesmo que desejo ter uma conversa contigo... vai tratar do serviço que te dei, partimos amanhã à luz dos primeiros raios.
Ana.cat
- Largar as velas...! Levantar âncora...!

As ordens gritadas por Hijacker deixavam sempre a tripulação em sobressalto, pelo convés corriam marinheiros e grumetes em todas as direcções. Ana Catarina encontrava-se encostada à espécie de cerca que rodeava o castelo da popa a observar tudo aquilo. Por seu lado, Hijacker continuava a gritar ordens lá em baixo enquanto caminhava pela confusão com uma confiança e concentração impressionante. Por vezes parava junto de algum grupo de marujos para lhes dar instruções mais precisas e rectificar procedimentos.
O Lusitano já se tinha lançado âncora à pouco mais de uma hora antes e as suas velas e contornos ainda eram perfeitamente visíveis no horizonte, Ana perguntava-se por quanto tempo as coisas se iriam manter assim.

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Alberto.barreto



O jovem Barreto estava ajoelhado perante o Rei, trazia com uma pesada cota de malha sobre os ombros, esta caia-lhe sobre uma couraça de torneio. Na verdade ele estava completamente equipado para entrar numa liça, apenas lhe faltava o elmo, esse encontrava-se encostado ao joelho que levara ao chão. No dude do elmo emergia uma figura feminina vestida completamente de arminhos, o timbre dos Barreto.
Com os olhos colados ao chão o jovem Barreto ouvia o rei sagra-lo cavaleiro da sua guarda real, algo com que o jovem sempre sonhara desde criança. Então o monarca ordenou-lhe que se erguesse e d'ele recebeu uma espada, era uma arma espantosa, o seu aço reluzia e o punho de prata estava cravejada de jóias. O Barreto olhou para a sua direita, ali se encontrava a sua Senhora, Johanna, a sua esposa. Ela sorriu-lhe, aparentemente orgulhosa do seu feito, o Barreto devolveu-lhe o sorriso e dirigiu-se a ela. Estava prestes a tomar a sua mão quando algo o fez cair e entre um alvoroço os finos aromas e perfumes da Corte foram substituídos pelo cheiro da maresia e suor, o Barreto fora acordado do seu sonho, estava de volta à realidade, aparentemente acordado por um dos intendente da Casa-de-Armas do seu tio.


- Acorde rapaz, o seu tio chamou-o ao convés, não o faça esperar! - resmungou o intendente enquanto o abanava insistentemente na cama, parecia insatisfeito por ali estar a servir de criado de quarto.

Mas a insatisfação do Barreto, por aquele o ter feito despertar do seu mundo idílico, era muitas vezes superior à do intendente. Os olhos castanhos do jovem escudeiro faiscaram de raiva na direcção do outro.


- Desapareça daqui! O sol ainda mal se levantou!

O intendente endireitou-se e estreitou a testa, inconformado com a reacção do jovem. Decidiu por isso recorrer a uma técnica mais eficaz, pegou numa bilha de água que se encontrava pousada num canto e despejou parte do conteúdo na cabeça do escudeiro. E como esperado obteve bons resultados, entre pregões e insultos o jovem Barreto saltou da cama a esfregar os seus longos e ensopados cabelos acastanhados.

- Como ousas? Tu! Um sem-nome! - gritou, arregalando os olhos.

E numa tentativa de socar o intendente, o rapaz saltou para cima dele, mas tudo o que obteve com tal investida foi uma forte bofetada daquele que o atirou contra o chão.


- Comporta-te rapaz! Não sou tua ama, nem me nunca mais me levantarás a mão! - a voz do intendente era cortante como aço - Agora levanta-te, veste couro e toma isto - o intendente mostrou-lhe uma espada de treino - O teu tio espera-te no convés, não o faças esperar!

O Barreto obedeceu de má mente, vestiu-se da forma que lhe tinha sido mandada e afivelou a espada à cintura. Não era a primeira vez que usava uma espada de treino, como escudeiro era habitual darem-lhe uma arma para qualquer eventualidade, no entanto a sua habilidade para manejar uma não era maior que a sua paciência.
Já pronto, o jovem Barreto subiu as escadas que o conduziam ao convés, o dia estava enevoado e ventoso. Um dia bom para um marinheiro, mas não para Alberto, o vento era frio demais para o seu gosto.
De costas para ele, em contra-luz, e com uma espada segura nas mãos estava o seu tio, igualmente vestido de couro. Quando o jovem se aproximou o tio virou-se com aquele seu habitual semblante áspero e indecifrável.


- Desembainha a espada - ordenou ele, Alberto obedeceu prontamente - Se queres ser alguém tens que desbravar os caminhos que te são proporcionados. Para seres cavaleiro precisas de manejar a espada com mestria - Fernão Barreto colocou-se em pose para iniciar um combate - Comecemos pois, a estrada é longa e sinuosa.
Fernao.barreto



O velho Barreto observava o horizonte, ao longe já se distinguiam as Terras de Coimbra. O nevoeiro matinal começava-se a dissipar à medida que o astro rei reclamava o seu legítimo lugar.
No entanto um ruído chamou-lhe a sua atenção. Alguém tinha subido ao convés, o que àquela hora não era muito comum, excepto para marinheiros e grumetes, o que não era o caso. Fernão girou sobre si próprio e deu um longo e profundo olhar sobre o sobrinho que se tinha chegado. Trazia a espada de torneio que pedira ao seu intendente para lhe ser entregue mal a manhã surgisse.
O velho Barreto já tinha a sua própria espada nas mãos, preparada para a chegada do sobrinho. Detectando a incompreensão nos olhos dele, Fernão exclamou no seu habitual tom autoritário:


- Desembainha a espada. Se queres ser alguém tens que desbravar os caminhos que te são proporcionados. Para seres cavaleiro precisas de manejar a espada com mestria.

Ergueu a espada com a mão direita e colocou-se de lado para iniciar o treino.

- Comecemos pois, a estrada é longa e sinuosa...

O sobrinho seguiu-lhe os passos e também se colocou em posição. Fernão percebeu que ele agarrava mal na espada, mal tinha força para a manter firme no ar. Bastou um ataque com alguma força para lhe atirar a espada contra a amurada do Arminho. O velho Barreto suspirou de irritação perante a apatia de Alberto.

- Vai buscar a espada! E dá-te por feliz, se a tivesses deixado cair ao mar obrigava-te a nele nadar até a encontrares.

O jovem endireitou-se e correu na direcção da espada para a apanhar, voltando de seguida ao seu lugar, desta vez mais desperto.

- Outra vez! - exclamou o velho, balançando a sua espada na direcção de Alberto.
Ana.cat
[dois dias depois]


O tempo tinha melhorado significativamente nos últimos dias, o sol mostrava-se radiante no céu descoberto e o vento apesar de ter enfraquecido mantinha-se mais ou menos constante. Ana Catarina atravessou o convés na direcção do castelo da popa para se manter a par da localização do navio.
Por ali, entre marinheiros e alguns soldados a assistir permaneciam o jovem escudeiro da filha a treinar com Fernão. Já treinavam ali há pelo menos três dias e com o tempo foram atraindo uma pequena assistência de guardas desocupados.
Sem perder muito tempo a condessa subiu as escadas que a levavam à cabine do capitão. Hijacker não estava ali, o que não a surpreendeu, o tempo estava calmo e propício à navegação. Não havia pois necessidade de Hijacker estar a trabalhar. Na vez dele encontrava-se um Intendente que se limitava a segurar a direcção do leme.
Ana Catarina passou por ele sem uma palavra e debruçou-se sobre os mapas que estavam sobre a mesa de trabalho. Nenhuma localização estava anotada por isso a condessa teve mesmo que se virar para o Intendente.


- Sabe qual a nossa posição? - perguntou-lhe.

O homem, talvez na sua meia-idade, tinha uns profundos olhos castanhos e uma espessa barba negra. E perante e pareceu ter ficado surpreendido perante a questão. Mas logo se recompôs e levou correu para junto do mapa náutico.


- Dom Hijacker ordenou-me manter o leme para sudeste, ao que parece já alcançámos as águas do Condado de Lisboa e dirigimos-nos agora para Setúbal - disse apontando para a pretensa posição do navio no mapa - Se o vento nos for favorável é possível que ainda hoje entremos no Sado - concluiu com um sorriso no rosto e os olhos faiscantes de felicidade.

Ana também estava feliz, e cada vez mais perto de voltar a casa, voltar a cheirar Alcácer e o seu mercado, de pisar aquele solo para si tão sagrado.
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Alberto.barreto



As dores e as nódoas negras multiplicavam-se por todo o corpo. De treino para treino parecia piorar, embora o tio lhe garantisse o contrário: "Tens que enrijecer e ganhar resistência à dor". Era este o preço a pagar pelo domínio da espada.
Alberto tentou mudar de posição na cama para tentar adormecer de vez, mas por mais que rebolasse não conseguia encontrar nenhuma que não o magoasse e acabou por desistir. Sentou-se de um salto e procurou uma túnica para vestir sobre a pele.
Ainda era de noite pois o tio dormia ali ao lado, mas Alberto conseguia escutar o guinchar das gaivotas e para lá da janela os primeiros raios de sol despontavam.


- Gaivotas... - murmurou extasiado, compreendera finalmente: tinham chegado a terra!

O jovem Barreto procurou as suas botas e correu para o convés meio a cambalear devido a uma bota mal calçada. Quando subiu as escadas sentiu o vento frio a soprar contra o seu peito e a pele de galinha a eriçar-lhe os pelos.
Era ainda noite mas a lua cheia e as estrelas que polvilhavam o céu davam-lhe alguma visibilidade. O Barreto correu para a amurada e debruçou-se sobre ela para melhor percepcionar a vista. O Lusitano seguia à frente do Arminho, como de costume, mas para além dele foi outra coisa que lhe captou a atenção.


- Alcácer... - sussurrou fascinado com o reflexo da cidade sobre o Sado.

Ali estava ela, com as suas fortes muralhas e torres que remontavam à ocupação árabe. Nesses seus tempos áureos a cidade desdobrava-se pela colina onde estava instalado o castelo e todos os edifícios mais importantes. Mas desde a sua conquista, por parte das tropas portuguesas, que Alcácer perdera parte do esplendor desses tempos. As muralhas apresentavam-se deterioradas e algumas das torres estavam inutilizadas. Mas não era por isso que Alcácer perdia aquele seu encanto especial de vila muralhada à beira-rio com imensos campos de cultivo a seus pés e pescadores espalhados pelo Sado em busca do seu sustento diário.
O Barreto encostou as costas à amurada e deixou-se escorregar, apesar de todas as dores e o frio o aspirante a cavaleiro adormeceu ali mesmo, a pensar no seu regresso e em tudo o que tinha deixado para trás.
Ana.cat
Ana Catarina decidiu subir ao convés já a manhã ia a meio. Por todos os corredores se escutavam conversas entusiasmadas e bagagens a ser descarregadas. Um nervoso miudinho preenchia a condessa, tinha receio da Alcácer que ia reencontrar e da recepção que iam ter entre a população.
Subiu as escadas lentamente e do convés observou o seu movimento, os marinheiros ultimavam os pormenores do atraque, carregavam grossas cordas, recolhiam as velas e traziam os bens mais importantes para ali para serem descarregados. Também os botes, usados para transportar os tripulantes enquanto o navio não era devidamente ancorado ao cais, se estendiam pelo rio como cascas de noz repletas de formigas ansiosas de chegar a terra. E era nessa mesma terra que mais formigas compareciam para receber os seus filhos regressados da fúria da guerra e da tempestade.


- Dom Hijacker autorizou o desembarque assim que os primeiros populares se juntaram na costa - a voz era de Fernão, o guarda que Ana não viu chegar.

- Aplaudo a decisão, esta gente não vê a família há largos meses, é o mínimo que poderíamos fazer por eles - suspirou a condessa.

O velho soldado assentiu com a cabeça àquela resposta. E antes que Ana Catarina pudesse dizer algo, ele tomou a palavra para puxar um assunto que há dias ocupava os pensamentos da Monforte, um assunto delicado.


- Minha senhora, e os mortos?

Ela perdeu a rígida postura por alguns segundos, desviando o olhar para o soalho do convés, talvez aí buscando forças.

- Os seus restos mortais deverão ser entregues às respectivas famílias para que tenham um funeral aristotélico - suspirou - Que seja entregue igualmente uma bolsa de ouro como agradecimento por cada morto - sentiu-se mal com aquelas palavras, como se fosse possível que a vida humana pudesse ter um valor monetário - É uma compensação simbólica - admitiu.

Fernão não desviou o olhar da condessa, como que a ler o que esta estava a sentir, como era tão seu hábito.


- E o valor dessa quantia...? - obrigou-se o Barreto a perguntar.

Ana Catarina desviou o olhar dos pés e dirigiu-o ao oficial. Sentia a irritação a tomar conta de si, porque é que ele insistia no assunto? Ainda agora tinham chegado a Alcácer, ela tinha tempo para pensar até lá!


- Não... Não sei... - admitiu com atrapalhação - Quando vir os papéis do tesouro da minha família logo decidirei...

Ela pensava que assim iria evitar tocar no assunto, pelo menos naquela altura tão delicada. No entanto o olhar de Fernão mantinha-se pregado no dela, sentiu que ele a estava a recriminar pela indecisão. Num rasgo de raiva lançou um mal-humorado olhar ao Barreto.

- Não admito que me olhe dessa forma! Logo tratarei do assunto! - o seu tom de voz era agora grave e autoritário - Devolva os mortos aos seus familiares como lhe ordenei - fez uma pausa, sentia-se idiota por estar a despejar no velho e fiel Fernão, mas não podia dar parte fraca agora, era tarde demais - Excepto o corpo do meu primo Bernardo, quero que a sua sepultura e funeral sejam dignos do seu nobre nascimento e linhagem!

O assunto estava esgotado ali. A condessa encaminhou-se às escadas que a conduziam ao porão e desapareceu para lá das entranhas do Arminho, sem sequer ter lançado um olhar digno disso à cidade. Gostaria de ter voltado atrás para rever de novo a cidade e pedir desculpas a Fernão, mas o mal estava irremediavelmente feito. Era necessário tratar de outro assunto agora.
A Monforte entrou na sua camarata e dirigiu-se à sua mesa de trabalho. Sobre ela estava um cofre cujo conteúdo lhe fora entregue por Eudóxio ainda na Bretanha. Ana abriu a caixa e deparou-se com um pequeno papel dobrado acompanhado por um anel de ouro.
Era necessário realizar a última vontade de Bernardo.

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