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Malo Mori Quam Foedari (Antes a Morte que a Desonra)

Ana.cat
[Acampamento dos exércitos do Ponant nas proximidades de La Trémouille]


Depois da vitória no cerco de Poitiers o exército do Ponant agora reunia, para além de contingentes bretões, angevinos, guyenenses e até provençais (da Provença, região vassala ao Sacro Império Romano-Germânico), os estandartes do Condado de Poitou. O exército atingira tais dimensões que a sua progressão no terreno era demasiado óbvia e lenta para preparar um ataque surpresa à cidade de La Trémouille. No entanto aquele era um trunfo para o Ponant, as tropas francesas estavam de tal forma desfalcadas e desmoralizadas depois da derrota em Poitiers que só a visão de um exército de tais dimensões era um factor suficientemente dissuasor.
Tendo isto em conta os generais do Ponant decidiram assentar acampamento nas proximidades de La Tremouille de forma a intimidar os poucos franceses que ainda permaneciam no interior da cidade. E a estratégia resultou, apenas um dia depois o líder das tropas francesas chegou ao acampamento escoltado por dois cavaleiros para negociar os termos da devolução da cidade às tropas da Aliança sem o derramamento de sangue. O fidalgo foi atendido e ficou acordado que até ao pôr do sol do dia seguinte os franceses deveriam abandonar a cidade e as suas portas estariam abertas para receber o exército. Como garantia de tal acordo, os generais da Aliança exigiram que o líder dos francesas ficasse seu refém, o que veio a acontecer.


    ***

Há dias que o exército estava acampado nas proximidades de La Tremouille na expectativa de que lhes fossem abertas as portas sem derramamento de sangue. Ana Catarina, que nestas alturas não tinha muito para fazer, reuniu-se com os seus familiares e a certa altura da amena conversa decidiu contar-lhes uma antiga lenda bretã que ouvira do seu avô:

- Esta lenda chama-se Ar C'Hastell Tremazan, o castelo de Trémazan - exclamou numa entoação quase profética - Contava o meu avô que isto se sucedeu no século VI.

A Monforte pigarreou e fingindo-se em meditação para aguçar a curiosidade da família.

- Bom, desde sempre que o castelo de Tremazan, localizado na ponta oeste da Bretanha, próximo de Brest, integrou os domínios da família Chastel, uma família de pequenos fidalgos que à época prestava vassalagem ao rei francês. Gurguy de Tremazan era o primogénito e após dez anos ao serviço do rei de França regressou às terras da Bretanha para reencontrar a família.
A madrasta foi a primeira a vê-lo e não tardou a contar-lhe tudo o que acontecera na sua ausência. A madrasta invejava a beleza de Haude, a irmã mais nova de Gurguy, por isso as suas palavras cheias de fel e mentiras elaboraram um quadro tão negro dela que o irmão ficou fora de si.


A condessa fez uma pausa e ajeitou-se melhor no banco onde estava sentada, o que enervou um pouco a curiosa audiência.

- E assim que Haude apareceu Gurguy empunhou a espada e ali mesmo, de um só golpe, cortou-lhe a cabeça. Logo se arrependeu pelo seu acto irreflectido, mas já era tarde. Haude estava morta, para júbilo da sua madrasta.

Na audiência ouviu-se um coro de lamentações e injúrias a Gurguy.

- Deixem-me continuar... ainda não acabei! - protestou - Gurguy ficou consternado pelo seu erro e deambulou pelo castelo até aos aposentos do pai, no entanto, antes que ele lhe pudesse contar o sucedido Haude apareceu entre eles, segurando a cabeça decepada nas mãos e com toda a simplicidade pousou-a no seu lugar original. Expôs ao pai e irmão a traição da sua madrasta, que confrontada negou todas as acusações e por isso foi fulminada por um raio divino de seguida.

- E a Haude? Ficou viva? - perguntou alguém

Ana acenou-lhe negativamente e continuou a narração.

- Haude depois de perdoar o irmão desapareceu da mesma forma como tinha aparecido. No entanto Gurguy ficou inconsolável e dirigiu-se ao bispo Sant Paul para lhe pedir a absolvição dos seus pecados, este aconselhou-o a penitenciar-se. Foi o que ele fez, jejuou por quarenta dias e ficou transformado, uma coroa de fogo caiu-lhe sobre a cabeça e fê-lo retornar até junto do bispo. Decidiu assumir o hábito monástico e rebaptizar-se com o nome de Tanguy. Até ao fim dos seus dias levou uma vida de homem santo, e foi o fundador da abadia de Lokmazhe em Plougonvelen.

Um burburinho cresceu na tenda, comentavam a moral da lenda, o castigo da madrasta, o triste destino de Haude e a vida de penitência seguida por Gurguy.
Ana Catarina ficara satisfeita com o resultado da sua narração e quando se preparava para levantar um servo português entrou na tenta para lhe avisar que chegara um soldado com notícias do marido e da filha.
A Monforte ergueu-se rapidamente e correu até à entrada da tenda, onde um soldado lhe tapava o sol de meio dia.


- Que novidades tem? Pelas barbas de Aristóteles diga-me por favor!

O soldado inclinou ligeiramente a cabeça em sinal de respeito e disse:

- Dom Filipe e a dama Johanna encontram-se vivos e a restabelecer-se em Thouars, junto com os restantes feridos no cerco de Poitiers.

Ao ouvir aquelas palavras Ana agradeceu a todos os santos e arcanjos pela graça concedida... estavam todos bem e mais importante, Johanna estava viva! Após tantos dias de incerteza sobre o seu paradeiro finalmente tinha a confirmação que mais ansiava. A condessa sentiu os joelhos tremerem-lhe de emoção e levou-os à terra. As suas mãos brancas apoiaram-se no chão e arranhou a terra por baixo destas, algumas lágrimas correram-lhe pelo rosto. Ana estava aliviada, tudo o que temera até então não se realizara.
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--Gwereg
[15 dias antes, algures na floresta de Brocéliande (lugar mítico das crónicas arturianas), Bretanha]


Sentado numa pedra revestida de musgo, Gwereg dedilhava algumas notas de uma conhecida musica bretã no alaúde.

- Tri martolod yaouank, tra la la, la di ga dra... Mallozh! - vocifrou - N'eo ket klotadur!*
[* Três jovens marinheiros... tra la la, la di ga dra... Maldição! (...) Não está afinado!]

Frustrado com a desafinação do instrumento, Gwereg pousou o alaúde sobre o solo macio.
Lentamente bardo bretão fez-se escorregar da pedra e caiu suavemente no chão de forma a que o seu anterior assento lhe servisse agora de encosto.

Gwereg era um jovem, nos seus vinte e poucos anos, apaixonado pela natureza e pela música, desde pequeno que por influência familiar aprendeu a tocar os instrumentos típicos da cultura celta. Seu pai fora um conhecido bardo, moderno trovador, da região e passara o bixinho a Gwereg. Este apesar de ter nascido na Bretanha tinha ascendência galesa.

O ambiente da floresta de Brocéliande fascinava-o, dizia-se que aquelas árvores centenárias tinham testemunhado muitas das aventuras da saga arturiana, para além de terem albergado o famoso mago Merlin. Gwereg também vivia na floresta, raramente procurava o contacto com o mundo exterior e quando este vinha ter com ele, o bretão simplesmente tentava esquivar-se.

Talvez tenha sido devido a postura, que quando Gwereg ouviu um gemido algures na floresta este se escondeu imediatamente atrás do mato. No entanto um novo gemido voltou a ecoar por entre aquelas árvores centenárias. E a este outros se repetiram cada vez mais aflitivos.
À medida que os gemidos se sucediam Gwereg sentiu-se cada vez mais indeciso, entre o instinto de se proteger do mundo exterior e ajudar aquela pobre alma que parecia padecer em Brocéliande. Depois de hesitar por alguns segundos Gwereg decidiu procurar o autor dos gemidos. Não demorou muito a encontra-lo, bastou seguir o rasto das suas sonoras lamentações.

Era um jovem franzino, aproximadamente com a sua idade. Estava deitado com a barriga para o chão e esperneava-se, como se estivesse tomado por algum espírito maligno, à sua volta acumulavam-se folhas secas que ele arrastava com os seus movimentos irreflectidos.
Gwereg observou tudo o que rodeava o homem e só no fim é que o acudiu. Virou-o para cima e encostou-o a uma árvore, mas este não se aguentou e caiu para o lado para vomitar. O bretão entretanto já tinha descoberto a origem do mal. Dentro de uma mala de couro o desconhecido tinha colectado cogumelos não comestíveis, deveria ser essa a razão do seus súbito mal estar e também dos vómitos.
O jovem bardo voltou a sua atenção para o doente, colocou-o com dificuldade às suas costas e conduziu-o à tosca construção de madeira em que vivia na floresta. Lá dentro preparou-lhe um caldo de ervas e bagas moídas e deu-o de beber ao forasteiro. Só minutos depois é que este deu sinal de recuperação:


- Obrigado... - suspirou

Gwereg não entendeu o significado daquela palavra, mas entendeu o sentimento com que foi dita e ficou reconfortado.
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Ana.cat
[La Trémouille, dia da re-ocupação da cidade pelo Ponant]


O dia amanhecera cinzento e com alguma chuva, mas para Ana Catarina isso era um inconveniente com pouca ou nenhuma importância, após vários dias de incerteza a condessa recebera finalmente a notícia de que a sua filha estava viva e de boa saúde em Thoaurs.
Entusiasmada, ela subiu a um tronco e falou para os seus familiares.


- É hoje! - anunciou - Preparem já as vossas montadas e bagagens, arrumem-nas nas carroças, desmontem as tendas e limpem o terreno. Temos a manhã para ter tudo pronto, pois hoje iremos finalmente entrar na cidade.

Ouviram-se exclamações de entusiasmo entre o grupo.

- E os nebisinos? - perguntou alguém.

- Os nebisinos abandonaram ontem a cidade, deixando um rasto de miséria atrás de si.

Uma nova onda de exclamações varreu o grupo, desta vez de indignação. Ana sentiu então necessidade de os esclarecer.

- Calma... isso fazia parte do acordo para a devolução da cidade, não nos esqueçamos que tanto nebisinos como pontevinos são franceses, nenhum dos lados deseja, por mais rancor que tenha um pelo outro, aniquilar a outra parte ou continuar esta guerra fratricida.

O grupo tranquilizou-se e desmobilizou de seguida para preparar a entrada na cidade.

    ***

Na tarde daquele dia os diversos exércitos que compunham as forças do Ponant na frente do Poitou deram finalmente entrada na cidade ocupada de La Trémouille. Ana Catarina seguia a meio da coluna integrada no seu contingente. Como era de esperar a Monforte encontrou uma cidade praticamente vazia onde a pobreza era uma realidade que se alastrava a praticamente todos os estratos sociais.
Mas isso não impediu que os exércitos fossem recebidos de forma entusiástica pelos poucos residentes presentes na cidade.


- Qual é o próximo passo? - perguntou Ana ao tio, enquanto ambos assistiam ao hastear do estandarte do condado de Poitou, cinco castelos de ouro dispostos em aspa sob fundo em gules, no edifício da Mairie (Casa do Povo).

- Temos ordens para aqui ficarmos retidos a reorganizarmos-nos e aguardar a chegada de reforços, julgo que o plano será um ataque coordenado a Limoges.

- A capital de Limosin et de La Marche... a tomada dessa cidade seria um rude golpe das aspirações reais nesta guerra... - murmurou a portuguesa para os seus botões.
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--Gwereg
[Dias antes, na floresta de Brocéliande]


Alguns dias haviam passado desde que Gwereg resgatara aquele forasteiro e o tratara da ingestão de cogumelos venenosos. Ele ainda estava fraco, não se conseguia aguentar muito tempo em pé e falava muito pouco. Mas mesmo que falasse Gwereg não seria capaz de o entender.
Pelas vestes o bardo bretão suspeitou tratar-se de um soldado, naquela altura isso era o que não faltava pela Bretanha, o Grão-Ducado estava em guerra e era habitual assistir a grandes mobilizações de soldados naquela região. Apesar da extensa floresta que impedia a passagem de grandes grupos, o Loire estava paralelo a esta. As estradas junto à margem do rio possibilitavam a marcha dos soldados em direcção ao coração da Gália.
Gwereg não gostava destes conflitos e fazia de tudo para se afastar deles, mas o aparecimento daquele desconhecido poderia mudar tudo.

Certa manhã, quando regressou ao refúgio com dois coelhos para assar Gwereg dirigiu-se ao forasteiro que acabara de acordar com a sua chegada.


- Lapin giz ar chaseourien?* - perguntou-lhe apontando para um dos coelhos fazendo de seguida um gesto que pretendia simular o acto de comer.
[Coelho de caça?]

O estrangeiro encarou Gwereg com um olhar inexpressivo fazendo com que o bretão se sentisse desconfortável por momentos, mas logo acenou afirmativamente com a cabeça.
Enquanto o bardo preparava a fogueira para assar os dois coelhos o forasteiro observava-lhe os movimentos com um ar desinteressado, parecia estar com a cabeça noutro lugar.

Algum tempo depois, já quando ambos se saciavam com a caça da manhã, o estrangeiro dirigiu-se a Gwereg.


- Ahm... tu... teres... papel? - no intervalo de cada palavra o jovem tentava gesticular o seu sentido para que o bretão o entendesse.

Durante o tempo que ali estava de convalescença o forasteiro percebeu que Gwereg não era um selvagem que vivia na floresta, ele tinha conhecimentos de botânica, sabia tocar diversos instrumentos e tinha alguns livros velhos arrumados numa zona do refúgio, isso fazia-o suspeitar que o bretão sabia ler e quiçá também escrever.

Apesar de não ter entendido uma única palavra, Gwereg percebera pelos gestos o que o seu hospedado queria. Acenou-lhe que sim e levantou-se de seguida para ir buscar um pedaço de papel rasgado e uma pena cujo bico mergulhou numa taça com mirtilos esmagados.


- Kit a-skrivañ hag?* - perguntou Gwereg, imaginando que o outro desejava enviar uma mensagem a alguém a avisar que estava bem
[Vais escrever o quê?]

O forasteiro ignorou a pergunta por não a entender, pegou na pena e papel e escreveu uma curta mensagem pois o tamanho do papel não permitia grandes testamentos. E na falta de cera para lacrar e autentificar a carta o jovem molhou ligeiramente o seu anel na tinta de mirtilos e carimbou as suas armas na carta, um leão rampamt de duas caudas.
Quando entregou a carta a Gwereg este estremeceu quando viu por baixo da assinatura do soldado o leão carimbado. O bretão conhecia aquele símbolo de algum lado, era-lhe curiosamente familiar...

Gwereg tentou-se recompor e encarando o soldado e leu a assinatura:


- Bernardo... ap Moñforzh...

O forasteiro já tinha nome.
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Ana.cat
[La Tremouille... alguns dias depois da devolução da cidade...]


Alguns dias tinham passado desde a entrada dos exércitos do Ponant em La Trémouille. Aos poucos a vida naquela cidade pontevina ia voltando à normalidade, os habitantes que tinham fugido durante a ocupação das tropas reais haviam regressado e sob o comando do próprio conde do Poitou fora montada uma milícia e um exército local.
Os restantes exércitos do Ponant continuavam a reorganizar-se e a recrutar voluntários para o ataque a Limoges.

Ana Catarina passava os seus dias a acompanhar os novos recrutas do exército liderado por Kotapula, cada vez iam chegando mais e o exército começou a tomar dimensões bastante consideráveis.

    ***

Naquele dia em particular Ana encontrava-se a acompanhar os treinos físicos de preparação dos recrutas. Treinavam técnicas de luta com bastões e escudos de couro. A oficial nunca intervinha naqueles treinos, eles eram dados em francês e não lhe ficaria nada bem colocar-se a treinar no meio de homens, muitos deles camponeses sem qualquer instrução.


- Temos bons recrutas minha senhora - era um dos seus escudeiros portugueses que se juntava a ela com cara de caso - Salvo meia dúzia que parecem tratar a lança como se de uma enxada se tratasse... temos aqui bons soldados.

A Monforte desvalorizou a observação.

- Os verdadeiros soldados vêm-se no campo de batalha... mas concordo consigo, há aqui gentes valorosas.

Parecendo mudar de assunto o escudeiro meteu as mãos na sua sacola e retirou de lá um pergaminho.

- Uma carta de Thouars, minha senhora. Parecem boas notícias... - disse entregando a carta nas mãos da condessa que logo a abriu e leu ali mesmo.

O rosto fechado e frio da Monforte logo se abriu num sorriso luminoso e os seus olhos verdes reluziram que nem esmeraldas de um momento para o outro.


- Vamos receber reforços em breve! Os nossos compatriotas feridos no cerco de Poitiers voltarão a juntar-se a nós. Diz o meu marido nesta carta que irão partir de Thouars dentro de dias!

Dirigindo-se ao escudeiro Ana Catarina deu-lhe ordens para que este preparasse a chegada dos Monfortes que estavam de regresso.
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Joanokax


Após vários dias de "descanso", passados a cuidar dos feridos - principalmente do seu amigo Blue, Johanna parte com os reforços para la Tremouille. Estava mais que ansiosa por reencontrar a mãe e o resto da familia.

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--Gwereg
[Dias antes, na floresta de Brocéliande]


O silêncio da noite era aproveitado por Gwereg para colher as ervas e fungos, o jovem carregava uma lanterna numa das mãos enquanto que a outra segurava um galho com o qual vasculhava o chão coberto de folhas para encontrar cogumelos. Aquela pequena fonte de luz, no meio da total escuridão da floresta de Brocéliande quase que se assemelhava ao longe à luz das fadas invocadas nos tradicionais contos celtas.
Gwereg decidira sair só naquela noite pois nos últimos dias os arredores da floresta eram palco de mais uma passagem de tropas bretãs, a caminho da guerra a oeste. O jovem bardo temia que estas o encontrassem e o forçassem a alistar-se no exército.

Um uivo agudo e prolongado fez-se ouvir por entre o arvoredo, imediatamente seguido dos guinchos arrepiantes das corujas. Gwereg sentiu que a sua busca deveria ser terminada antes do tempo, a presença de lobos, mesmo que longe dali não era algo que se pudesse ignorar, muito menos numa noite de lua nova. O bardo apressou-se a pegar na sua sacola, a qual pôs a tiracolo de um só gesto, largou o galho e apressou-se na direcção do seu refúgio com o auxilio da luz emanada da lanterna.
Um novo uivo se ouviu, desta vez mais prolongado e nítido que o anterior, Gwereg começou então a correr. Ele já tinha passado por situações idênticas, mas nunca como aquela sentiu tanto receio.
O som de galhos e folhas pisadas chegou-lhe aos ouvidos foi o "click" que faltava para Gwereg começar a correr que nem louco, ignorou totalmente se a sua sacola estava a deixar cair a recolha daquela noite e quando mal se acercou do seu refúgio construído entre as pedras de um antigo santuário celta em ruínas, atirou-se lá para dentro e tapou a entrada com as tábuas que pretendiam fazer o mesmo serviço de uma porta. Com o seu corpo fez contrapeso sobre estas e deixou-se cair no chão, estava completamente esgotado com a corrida.
O som de novos galhos e folhas a serem pisadas no exterior fizerem crescer um arrepio frio pela espinha do bretão, que se imobilizou de imediato contra a "porta". Esteve naquela posição por vários minutos, até que um uivo estridente anunciou a retirada da besta que se encontrava no exterior, as pisadas de folhas e paus ouviram-se cada vez mais distante e Gwereg, sentindo-se finalmente salvo, caiu de joelhos e suspirou agradecido:


- Trugarez vras mammoù-kozh... ar frankiz bezañ ar Ankou*...
[muito obrigado grande Mãe... por me livrares de Ankou*]

Um barulho ouviu-se do interior do refúgio seguido-se segundos depois da aparição do estrangeiro, Bernardo. Este encarou Gwereg com um olhar inquisidor, como se com aquele olhar bastasse para lhe perguntar o que lhe acontecera. O bretão sossegou-o através de gestos e levantou-se. Largou a sacola meio vazia sobre uma pedra e caiu sobre a sua cama de palha.

Bernardo esse aproveitou o descanso do bretão para finalmente saciar a curiosidade que há dias o atormentava: a presença daquele amontoado de livros num canto do refúgio. Pegou no primeiro e limpou-lhe a capa, era uma capa simples de couro, sem qualquer enfeite. Abriu as primeiras páginas e deparou-se com ilustrações de plantas acompanhadas por texto num idioma próximo do bretão. O segundo livro tinha uma ilustração baça na capa, tratava-se de um cavaleiro montado no seu corcel, no titulo liam-se três palavras "Ar roue Arzhur", Bernardo folheou o livro e pelas ilustrações percebeu tratar-se de um romance de cavalaria antigo.


- Como é que ele tem estes livros? Como os conseguiu? - murmurou Bernardo quando pegava no terceiro livro

O terceiro era um livro de crónicas medievais, não estava em bretão tal como o primeiro livro, mas ao contrário dos outros este tinha muito poucas ilustrações, e as que tinha eram imagens gastas de cenas de uma corte real. Um escudo de armas numa das páginas remeteu Bernardo para a corte de Gales, um antigo território anexado há dois séculos por Inglaterra. O jovem continuou a folhear o livro e as imagens tornaram-se mais frequentes, mostravam um casamento real. Sobre o noivo estavam desenhadas as armas de Gales e sobre a noiva... um leão de prata em posição rampant e de cauda bifurcada. Bernardo ao ver aquela imagem quase deixou cair o livro, afinal aquelas eram as armas da sua família, mas que fariam elas ali? Na legenda podia ler-se "Priodas Llywelyn ap Gruffudd a Elinor de Montfort", então o jovem finalmente compreendeu, tratava-se de Eleanor de Montfort, Bernardo já havia ouvido falar dela, era filha de Simon V de Montfort e irmã do antepassado fundador da linhagem da sua família. O pouco que o português conhecia da história daquela princesa confirmou-se nas imagens das páginas seguintes. O desenho de uma frota pirata a abordar um navio com bandeira de Gales e a raptar Eleanor sucedeu-se à imagem desta encarcerada numa prisão, e a esta a imagem de uma negociação entre o rei inglês e o príncipe de Gales. Várias páginas com imagens de guerra se seguiram, numa delas Llywelyn ap Gruffudd jazia morto no meio de uma batalha. Bernardo sentiu um arrepio ao virar as últimas páginas, Eleanor aparecia deitada morta numa cama com um recém-nascido nos braços e na última, com soldados ingleses de fundo, alguém fugia com uma criança nas mãos.
Bernardo fechou o livro perturbado com aquelas informações, e por momentos ficou a meditar sobre o destino daquela criança orfã, separada das suas raízes devido aos desejos de vingança de um rei.



* Ankou: figura da morte segundo a tradição bretã

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Eudoxio


"Ainda estamos longe", fora tudo o que conseguira compreender na resposta do soldado bretão. Falara baixo e entre-dentes, numa voz rouca. Eudóxio achava-o carrancudo, mas poderia ser também devido ao facto de estar sempre a perguntar se a viagem ainda tardava muito em terminar. Avançavam para La Tremouille onde iriam reforçar os guerreiros já lá presentes.

Ajeitou-se na sela. Não estava habituado a andar muito de cavalo e todas aquelas horas a andar a cavalo eram incómodas, ainda para mais numa estrada irregular como aquela. Reparando no seu desconforto, Erwana lançou-lhe um sorriso trocista. Eudóxio resmungou para si próprio, fosse ela homem e perceberia o quão desconfortável andar tanto tempo a cavalo era.

Erwana era uma jovem e bela guerreira bretã. Sedutora e de personalidade forte, era daquelas mulheres que não passavam despercebidas em lado nenhum. Sempre com homens a segui-la para todo lado, não lhes dava muita importância, nem atenção. Porém, tinha um ligeiro fascínio por Eudóxio e sempre que podia metia conversa ou lançava um simples e poderoso sorriso. Com um sorriso daqueles como arma, conseguiria desarmar qualquer soldado francês.

-Bom tempo para andar a cavalo. - comentou, ainda com um sorriso trocista.

-Durante uma meia hora, talvez. Tanto tempo é doloroso... Que seria de mim se não pudesse conversar consigo, apaziguando o meu ser que cansado está desta longa viagem?

Do outro lado ouviu um rosnar... Eudóxio acabara de formular uma nova teoria sobre o facto de os soldados estarem sempre tão maldispostos quando falavam com ele. Agora que pensava nisso fazia muito mais sentido...

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Ana.cat
[Entretanto em La Trémouille...]


As conversas dos habitantes da cidade, os cochichos das vizinhas, os gritos dos mercadores que apregoavam os melhores produtos da região e as lamentações dos mendigos que pediam esmola na rua, entre tantos outros fundiam-se num único som. Ana Catarina estava no mercado da cidade pontevina.

No alto da sua égua baia a condessa era conduzida por um escudeiro entre a multidão. Tal era a quantidade de pessoas que ela quase que tinha que pedir permissão para avançar e nem a forte presença das milícias locais conseguiam impor ordem.


- Isto hoje está impossível... para uma cidade que há duas semanas estava quase lançada aos ratos... - resmungou a Monforte, visivelmente aborrecida com o estado caótico do mercado.

- Vossa Graça com certeza saberá como as coisas são, com a mobilização de milhares de soldados para cá atrás deles vêm os habituais mercadores, usuários e outros...

A condessa concordou, desde que os reforços começaram a chegar a La Trémouille que esta se tornara numa cidade a fervilhar de negócios.

- Sim... mas encontre-me é a banca dos mercadores da região, temos que encontrar a bendita tapeçaria...

Ana Catarina deslocara-se ao mercado naquele dia para sondar os preços de tapeçarias, fora um pedido de um nobre português que ela se sentia na obrigação de satisfazer.

A busca não foi fácil, por várias vezes a condessa esteve para desistir e voltar para o acampamento do seu exército, mas a perseverança e insistência do escudeiro foi mais forte e lá acabaram por encontrar uma banca com tapeçarias da Flandres.
Ana saltou da égua e entregou-a ao escudeiro. Não havia muita variedade e a qualidade não era a melhor.


- Quel est le prix de chaque tapisserie?* - perguntou de imediato ao mercador, um homem magro com profundas olheiras e cara de poucos amigos.
[*qual é o preço de cada tapeçaria?]

- Cent et quatre-vingts écus chacun! - grunhiu, num tom que intimidava qualquer um e não permitia sequer regatear.
[*cento e oitenta écus (=cruzados) cada uma!]

Ana Catarina ficou em estado de choque quando ouviu o preço, pediu ao mercador que repetisse e resmungou qualquer coisa para dentro. Era um preço exorbitante, talvez até em Portugal as encontrasse mais baratas, indignada dirigiu-se ao negociante num tom irónico.

- Je n'ai pas donne cette argent ne qu'il ont été faits au fil d'or!*
[*Não dava esse dinheiro nem que elas fossem feitas em fio de ouro!]

Ignorando as repostas azedas do mercador Ana procurou o seu escudeiro, era hora de partir para o acampamento. A busca pela tapeçaria tinha que ser adiada para outra altura. A Monforte desconfiava que as verdadeiras tapeçarias flamengas a preços decentes só poderiam ser adquiridas na própria Flandres, e uma viajem até lá estava de momento fora de questão.

- Não tem importância, nenhum dos temas daquelas tapeçarias me agradava... - desculpava-se para o escudeiro enquanto regressavam ambos ao acampamento.
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--Gwereg
[Dias antes, na floresta de Brocéliande]


Gwereg estava prestes a fazer uma escolha difícil, e mal sabia ele que esta lhe iria mudar a vida.
Bernardo, o estrangeiro, estava restabelecido e desejava voltar a Gwened* onde tinha família. Apesar de este lhe ter tentado contar ao bretão a história do seu aparecimento em Brocéliande Gwereg continuava sem a entender na totalidade. Mas percebera que Bernardo era estrangeiro e viera com outros da sua terra participar na guerra, no entanto algum motivo o fez separar-se deles a meio do caminho e perder-se na floresta. Gwereg não entendia as razões que levavam alguém a deixar a sua terra natal para combater numa estrangeira, que motivos eram esses? Para quê arriscar a vida numa guerra que não é sua? Para quê tanta dor e sofrimento? Porque é que os Reis e Senhores fazem da sua vontade e caprichos o destino do seu povo? Se todos fossem como aquele bretão isso não aconteceria.

Bernardo estava pronto para a viagem e cabia a Gwereg guia-lo até à cidade pelos caminhos que só este conhecia, evitando encontros indesejados. O bretão ainda tinha consigo a carta que o estrangeiro lhe escrevera na convalescença e que agora não era mais necessária pois já estava recuperado, mas aquele selo no entanto continuava a intriga-lo.

Era uma manhã fria e com algum nevoeiro, como era normal naquela zona, os dois jovens traziam tudo o que lhes iria ser útil na viagem às costas. Gwereg seguia à frente de Bernardo quando a aventura começou. O desejo deste era chegar a Gwened* o quanto antes e voltar ao seu refúgio o mais depressa possível.


- Mont, mont!* - exclamou Gwereg a Bernardo para que este acelerasse o passo.
[Vamos, vamos!]

Bernardo não entendeu o pedido mas acompanhou o passo do bretão, de outra forma ficaria para trás.

- Montes? Não sei onde os vês, eu só vejo árvores e mato... - resmungou o português.


* Vannes

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Eudoxio


As chamas dançavam à sua frente e, de uma maneira que Eudóxio não conseguia explicar, prendiam-lhe o olhar. Era noite e tinham parado para repousar, depois de um cansativo e duro dia de viagem. Observando uma fogueira, Eudóxio, abstraíra-se de todo o ambiente à sua folta. As conversas que os soldados tinham ao seu redor, bem como as cantigas que iam cantarolando, pareciam distantes. Estava numa espécie de transe. Pensava em tudo e, ao mesmo tempo, não pensava em nada. Segundos pareciam horas e estava sereno, livre de todas as suas preocupações e medos... Não sabia explicar tal fenómeno, mas era acolhedor. As chamas não se limitavam a aquecer o seu corpo, aqueciam também o seu espírito...

Arrancado do seu "transe", deu pela presença de Erwana, que o chamava.

-Se eu fosse um reles nebisino o monsieur estaria morto... - comentou, com o seu belo sorriso.

Eudóxio olhou-a durante uns momentos e levou a mão ao queixo, assumindo uma posição pensativa.

-Não me parece... isso implicaria conseguir passar por todos estes soldados que estão aqui em redor e, não querendo subestimar as suas capacidades de combate, não penso que conseguisse... Além demais, sou insignificante... haveria de certo melhores alvos.

-Não penso que seja insignificante... -corou ligeiramente- Está frio... Esta ridícula fogueira é inútil. Importa-se que...

-Não, claro que não. Esteja à vontade. -respondeu de imediato Eudóxio, adivinhando a pergunta. E Erwana encostou-se a si, pousando a cabeça sobre o seu ombro. E ficaram em silêncio. Eudóxio observando as chamas e Erwana observando as estrelas. O mesmo sentimento corroía os dois por dentro...

-Já sabe qual a sua tenda?

-O meu apelido garantiu-me uma tenda só para mim...

-Muito bem.

-Não, não a mereço. Nem sequer sou um verdadeiro guerreiro. Não mereço ser melhor tratado que qualquer um destes soldados, antes pelo contrário. E não faz sentido nenhum que se gaste uma tenda para uma única pessoa...

Erwana permaneceu calada e voltou a olhar o céu nocturno.

-Podiam ser duas pessoas a usar a tenda... - murmurou timidamente.

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--Gwereg
[Ainda na floresta de Brocéliande...]


Haviam passado três dias que Gwereg e Bernardo iniciaram a sua jornada até Gwened, o caminho fazia-se sempre pela floresta entre mato cerrado. A progressão era lenta e isso aborrecia o bretão, mas não ao ponto de se decidir a tomar uma estrada. Gwereg tinha medo das Ost's que as patrulhavam, e estas por seu lado tinham receio daquela densa mancha florestal, afamada pelos seus encantos e mistérios.

Após mais um dia de duro caminho sempre a pé os dois viajantes decidiram acampar junto a uma pequena entrada de uma rocha para passar a noite. Não era uma gruta, nem providenciava tanta segurança como uma, mas fora a melhor opção encontrada ao longo de todo o caminho.
Para afastar os animais Gwereg preparara uma fogueira, na qual tentou cozinhar as suas escassas provisões de viagem. O bretão começava a ficar preocupado, a comida estava a acabar e ainda faltavam mais dois dias até ao destino. Bernardo por sua vez não parecia preocupado, aliás, desde o início da viagem que se encontrava bastante distraído com tudo o que o rodeava. Isso afligia Gwereg, que sabia melhor que ninguém que Brocéliande não era o local ideal para distraídos passearem.


- Debriñ! - insistiu Gwereg a Bernardo, apresentando-lhe um pequeno naco de carne.
[Come!]

Bernardo abstraiu-se dos seus pensamentos e aceitou a comida oferecida pelo bretão.

- Trugarez vras... - agradeceu, sem no entanto ter reparado que acabara de agradecer na língua de Gwereg e não na sua.

O bretão foi pegue de surpresa pelo agradecimento, até então os dois comunicavam-se essencialmente por gestos e grunhidos, uma forma muito primária para fazer chegar uma mensagem a outrem...
A vigia da noite era repartida pelos dois, naquela noite seria Bernardo a fazer o primeiro turno, no entanto, sabendo que este não tinha exactamente as melhores qualidades de vigia, Gwereg mantinha-se de sobreaviso e acordava com alguma regularidade sem que o companheiro de viajem desse por isso.

Durante o seu turno Bernardo decidiu entreter-se com algo para passar melhor o tempo, puxou da sua sacola de viagem e retirou um livro do seu interior. Era um dos livros que Gwereg tinha no seu refúgio, o português retirara-o do lugar sem o conhecimento do outro, mas como este supostamente estava a dormir não se preocupou, e à luz do fogo voltou a folheá-lo, revivendo novamente a história de Eleanor de Montfort e do seu marido, o príncipe de Gales. Era isso que o estava a incomodar desde o início da viagem, a razão daquele livro estar na posse de um bretão sem grandes posses e que vivia numa floresta.

No entanto Gwereg não estava de todo a dormir como Bernardo pensava que estava, o bretão pressentira o movimento daquele a retirar o livro da sacola e por momentos ficou quieto debaixo da sua capa de lã, que à noite servia de cobertor, a observar a ousadia do estrangeiro. Como se atrevera ele a roubar-lhe algo com aquela importância depois de tudo o que fizera pela sua vida?
Gwereg era uma pessoa paciente, mas naquele momento a indignação apoderou-se de si e levantando-se confrontou Bernardo.


- Evel-se kretaat ur riskl?! - gritou na cara do outro, ignorando completamente o ruído que estava a fazer - Reiñ gwec'h levr bremañ!
[Como te atreves? (...) Dá-me esse livro já!]

Bernardo protegeu o livro instintivamente contra o peito, fora do alcance do bretão.
Gwereg não era violento, mas a atitude daquele estranho desafiava o seu controlo sobre os seus instintos mais primários. Se fosse outra pessoa provavelmente teria espancado Bernardo ali mesmo até reaver o livro, mas Gwereg não era assim, apesar da tentação de ter esse comportamento.
O bretão acalmou-se e colocou a mão sobre o ombro do outro, respirou fundo e fez-lhe uma pergunta que mais soou ao rosnar de um animal, Gwereg ainda não estava totalmente tranquilo.


- Perak? Perak gwec'h?
[Porquê? Porquê isso?]

Bernardo percebera a pergunta e o seu tom ameaçador também, por isso não tardou a pegar no livro e a folheá-lo até à página da ilustração do casamento de Llywelyn ap Gruffudd e Eleanor de Montfort. Ao mesmo tempo que apontava para a gravura das armas de Eleanor retirou o seu anel e mostrou o sinete a Gwereg. O bretão não era parvo e percebeu de imediato a relação entre os dois leões bicaudados, mas nada disse, limitou-se a recolher o livro e a voltar para a sua cama improvisada para dormir.

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Ana.cat
[Arredores de La Trémouille]


A brisa gelada parecia cortar-lhe o rosto como se de uma faca afiada se tratasse. À sua retaguarda três cavaleiros seguiam-na a trote. Não se tratava porém de uma corrida ou perseguição. Ana Catarina abandonara a segurança de La Trémouille para desanuviar, bem que estava a precisar... a vida naquela cidade pontevina degradava-se a cada dia que passava e isso a condessa não era capaz de suportar. A longa espera exasperava os soldados que ansiavam por acção, aos poucos a falta de moral foi grassando pelo acampamento, onde antes se treinava e discutia estratégias e políticas começou-se aos poucos a jogar a dinheiro, a frequentar casas de má fama e o alcoolismo proliferou.
Educada num ambiente austero onde os bons costumes e a moralidade faziam parte do cotidiano de todos a Monforte não conseguia permanecer muito tempo no burgo.
Aqueles passeios a cavalo pelas redondezas eram o resultado dessa incompatibilidade, uma forma de se abstrair da realidade e aproveitar o bom que a natureza lhe proporcionava. Ana esperava que com a chegada dos reforços de Thouars aquela incómoda situação se reverte-se e os bons costumes voltassem ao acampamento. A saudade do marido e da filha corroíam-na por dentro e nem mesmo a companhia dos restantes familiares lhe acalmava a alma atormentada.

A visão de um ribeiro fê-la voltar à realidade e um sinal aos cavaleiros que a seguiam foi suficiente para ali pararem.


- Desmontemos - disse-lhes - Deixai as vossas montadas beber e repousar... já partimos de La Trémouille à quase uma hora e elas já devem estar cansadas.

Os cavaleiros obedeceram-lhe, os cavalos foram conduzidos ao ribeiro e livres dos arreios para pastarem por alguns minutos.

Com os cavaleiros dispersos pelo campo e os cavalos a saciarem-se na ribeira a condessa deitou-se no chão coberto de erva e fechou os olhos, pela primeira vez em muito tempo sentiu-se verdadeiramente livre. Parecia-lhe uma sensação nova, Ana já não estava na flor da juventude e a idade começava a dar os primeiros sinais. Ela estava consciente disso, não temia nem escondia o avançar do tempo na sua aparência. Em pensamento fez breve viagem pela sua infância, juventude e idade adulta, reviveu os momentos que mais a marcaram... sentiu que ainda não estava completo um ciclo mas ao mesmo tempo degladiava-se com a vontade de aproveitar o resto da sua vida em paz. Este conflito interior entre o fazer, trabalhar e batalhar por ideais confrontava-se com a vontade de aproveitar o resto dos seus anos e de os viver sem sobressaltos... era uma escolha difícil, mas este conflito certamente não teria fim tão cedo.

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--Gwereg
[A um dia e meio de viagem de Gwened (Vannes)]



Gwereg observava atentamente aquele velho mapa enquanto Bernardo, a poucos passos do bretão, descansava sentado num tronco. A relação de confiança entre os dois estava bastante abalada depois do episódio da noite anterior. Gwereg não voltara a dirigir a palavra ao estrangeiro nem aquele a ele. Um ambiente de cortar à faca caiu sobre os dois, limitavam-se a gesticular o mínimo possível para transmitir indicações do percurso um ao outro.

Os dois viajantes já tinham deixado a segurança da antiga floresta de Broceliande, caminhavam agora furtivamente por caminhos pouco usados, que mais se assemelhavam a trilhos de cabras do que estradas propriamente ditas. Sempre que avistavam aldeias optavam por se desviar dos trilhos de modo a evitar o contacto com os seus habitantes ou autoridades daquelas. Ao entardecer, à medida que se aproximavam de Gwened, foi-se tornando impossível desviarem-se da rota para evitar os povoamentos, precisamente por que estes se tornavam mais frequentes. Afinal aquela cidade portuária era a mais populosa e agitada de toda a Bretanha, mais até que as próprias capitais*. Mas com o avançar da viagem essa agitação correu a favor dos dois viajantes, que entre tanta gente se tornaram mais dois anónimos entre tantos outros.
Bernardo ainda tinha algum dinheiro consigo e foi o suficiente para pagarem uma noite numa velha estalagem sem grandes condições, mas que servia perfeitamente de abrigo.

No dia seguinte entrariam finalmente em Gwened... e Bernardo reencontraria a sua familiar enquanto que Gwereg poderia regressar para Broceliande para viver a sua vida em paz, como sempre vivera.



* A Bretanha nesta altura tinha duas capitais, Rennes (Roazhon) e Nantes (Naoned). Mesmo no jogo, apesar de Rennes ser de facto a capital, todas as estruturas de poder estão oficialmente em Nantes, pois é onde se localiza o castelo do Grão-Duque.


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Filipesilva


Ser acordado pelos primeiros raios de sol de uma manhã de inverno nunca soubera tão bem, mesmo após uma noite mal dormida, tal era o nível de ansiedade. Ao observar da janela o céu limpo banhado pelos raios de sol, o conde respirou fundo deixando-se contagiar pela energia e harmonia da natureza. Este sol apenas podia ser um bom presságio e não havia dia melhor para isso. Filipe sabia que, com a graça de Jah, antes daquele sol maravilhoso se voltar a pôr ele voltaria a sentir o abraço da sua amada.

Com a adrenalina e a moral em alta, o conde arregaçou as mangas e arrumou tudo na carroça. Quando o resto do grupo acordou, já estava tudo pronto para partirem. Enquanto se faziam à estrada, a animação tomou conta do grupo que se entreteve durante grande parte do caminho a entoar cânticos que aprenderam na sua terra natal bem como a pregarem partidas uns aos outros, indiferentes ao perigo que rondava naquela zona. Como que por magia, a longa distância que separava Poitiers de La Tremouille nem se fez notar e foi com grande surpresa que o grupo avistou ao longe as muralhas da cidade. Tal foi a emoção que o espírito competitivo tomou conta e aquela visão divina transformou-se no sinal de partida para uma corrida até à porta da cidade.

Sendo La Tremouille parte integrante da linha da frente desta guerra, não foi com muito agrado que os guardas da cidade avistaram este grupo de soldados a aproximar-se a grande velocidade, e o pequeno contingente português não demorou muito a aperceber-se disso pela reacção dos guardas, que selaram as portas da cidade e convocaram todos os militares disponíveis para guarnecer as muralhas. O grupo não teve outra alternativa do que cancelar a corrida, abrandar e iniciar diálogo com os guardas para explicar a situação.

Após muito diálogo, os guardas finalmente deixaram o grupo entrar na cidade e juntar-se aos seus camaradas. Por esta altura, a adrenalina era muita e Filipe não se conseguia conter, procurando freneticamente a sua esposa por entre a multidão. Ao avistar caras conhecidas, a ansiedade apenas aumentou. Por esta altura, não havia nada que pudesse desviar o conde da sua missão, de tal forma que ao aproximar-se dos seus camaradas portugueses que já não via há numerosos dias, Filipe limitou-se a dar um breve abraço a cada um seguido da pergunta que o torturava:

- Alguém sabe onde está a Ana?

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