Verdadeiramente era um dia singular, único, completamente atípico, daqueles que jamais pode alguém se passar incólume ou indiferente certamente, diante as condições tão raras e incomuns quanto um cortejo dum rei ou rainha apresenta, pelas ruas dalguma plaga qualquer; especialmente quando naquel lugar não havia residência estabelecida, mas apenas uma passagem circunstancial.
Era justamente o caso daquel aprendiz-de-trovador, Martinho, quando inesperadamente Aristarco lhe chamara para acompanha-lo até Lisboa, algo deveras novo em se tratando da cidade principal; usualmente apenas caminhos empoeirados, cansativos ou trabalhosos, sejam por distâncias a serem vencidas, sejam por condições tão irregulares de caminhos, quiçá dizer de riscos que os viajantes saiam a correr com os malfeitores escondidos pelas sombras, a aguardar nalguma curva das estradas. Inda sim, era tudo mui bom e feliz para o aprendiz, com gratas oportunidades de mostrar suas qualidades musicais em apresentações.
Mas aquele dia era tão singular e único, que o impensável e improvável acontecera: Martinho se atrasara porque dormira demais, onde já se viu algo assim, quando estava em Lisboa pela primeira vez, e inda mais quando um cortejo real se daria naquel dia e dera ao luxo de lamentavelmente se apegar ao travesseiro, e limitar a responder à batida na porta com voz distante do trovador com pouca vontade e muita preguiça, em palavras que giravam em algo como já vou, já vou...
Quando se dera conta, notara a gravidade da falha, e de certa maneira culpou o mestre-trovador por não ter derrubado a porta de seu quarto na pousada, como deveria ao menos naquela circunstância, pois onde já se viu aquilo, perder o raro desfile nobre , e aquele ter seguido provavelmente ao evento, confiado na resposta de Martinho.
Levantou-se da cama como um corisco e correu em tudo o que fez, desde asseio até vestimenta precipitadamente colocada, porque pior não podia ficar com o atraso que já avançava longo e inclemente.
Como são as coisas do tempo: quanto mais se quer que o mesmo passe, mais se arrasta, quanto mais se quer que se arraste, mais voa.
Não há misericórdia na barganha com o tempo, só traquinagem para com quem tenta burlá-lo, irado consigo mesmo Martinho balbuciava na arrumação e chegava duramente a esta conclusão, por lembrar das palavras de Aristarco que dizia naquel latim romano em uma passagem filosófica que tratava mais ou menos assim, Tempus nos avidum devorat, algo que lhe soava a mais pura verdade, porque ele próprio se sentia devorado pela avidez do tempo.
E lá se foi o aprendiz (já em um estado melhor) pela rua, a caminhar aceleradamente e notar movimento para ele jamais visto como naquel situação, só tornando tudo mais intransitável à medida que se aproximava do lugar combinado por aqueles flamengos de Brugge, Gent, Leuven, Antwerpen, Mechelen, e uma série de esquisitos nomes que ouvira Aristarco falar diversas vezes.
Quando finalmente teve que ganhar caminho com algum esforço pela multidão, em um lugar relativamente estreito, próximo da esquina que estariam o trovador e o grupo estrangeiro distinto. Quase soltou uma palavrada quando alguém lhe pisou o pé (inevitável tais fatos, sem dúvida) com gosto e préstimo, o problema é que o homem deveria ter o tamanho de gigante e seu peso de mesma proporção, oras.
A partir daí, só manquitolando, por mais que nessa altura isto fosse imperceptível e irrelevante, exceto para o aprendiz, todo dolorido, talvez mesmo com uma parte do pé destruída, quem vai saber (ao menos enquanto não acabava o cortejo), pois sim, tornara-se um drama; silencioso é verdade, mas drama.
Demorou um pouco e algum esforço, a ter que se pronunciar o nome Aristarco aqui e acolá diante aqueles homens com roupas paramentadas e língua rude (o flamengo lhe era um pouco ofensivo, depois que o ouvira com maior frequência); alguns não lhe ajudavam, porque não estavam familiarizados com a pronúncia lusitana, até que um deles que já o tinha visto em companhia do trovador, explicou aos demais do que se tratava, e somente assim começaram a lhe dar passagem lentamente, quando perceberam as intenções de encontrar aquel outro.
Até que finalmente chegou próximo (e já cansado) do trovador, que se encontrava conversando com seu amigo Pêro Lombardo; ao vê-lo, Aristarco que sorria outrora parou e meneou a cabeça negativamente sem dizer uma palavra sequer.
Pêro Lombardo por sua vez, mantinha o semblante sorridente e fazia comentários com a língua estrangeira, a parecer rir um pouco mais quando viu Martinho se aproximar.
Quando já se encontrava ao lado do mestre-trovador, Martinho disse ruborizando-se:
- Sim, sim... O tempo ávido nos devora...
Respondeu o trovador com uma expressão indecifrável de ânimo:
- Não tanto desta vez, para Sêneca... Ou para ti...
Aristarco com um sutil movimento do rosto a chamar a atenção do aprendiz aos outros cavaleiros que já passavam, direcionou o olhar do primeiro para a rua a dizer em voz tranquila e sem pesar:
- Sua Majestade ainda esta por passar...
O aprendiz sorriu aliviado e pareceu-lhe que um fardo havia sido retirado de si, deixara de se sentir tal qual um animal carregador de fardos, tamanha era sua preocupação em presenciar a passagem da nova soberana lusitana, algo absolutamente invulgar e promissor para inspiração poética, como assinalara o trovador; o tempo enfim não havia sido um juiz assim tão duro, que alívio desta vez.
Todavia, a dor em seu pé continuava forte, por todos os reis e nobres daquel enorme e desconhecida Europa, como era forte e um reinado inteiro daria para aliviar a sensação dolorida da pisada do gigante.
Essas cousas são assim mesmo, realmente não se passa incólume, isento com algum engano cometido, mesmo nalguma condescendência de veredito que se conceda. Naquele caso em questão, pelo tempo, talvez passível do princípio ser estendido às demais circunstâncias...