Chegámos Relâmpago - disse a Marquesa de Chaves ao seu velho companheiro de quatro patas, visivelmente fatigada da viagem.
O Puro Sangue Lusitano, negro como a noite, deteve-se e a Nobre Dama apeou-se rapidamente da montada.
Apesar da idade, Sccm continuava ágil e com uma boa compleição. Os treinos militares rigorosos durante a juventude, a par das caçadas regulares e torneios, tinham contribuído para a boa forma física da veterana. Não fossem os cabelos brancos, e ninguém diria que já é bisavó.
Não tinha chegado ainda o " mês do sangue ".
Para Novembro, mês da matança, após a qual iriam salgar-se e defumar-se as carnes para consumir no Inverno, ainda faltavam algumas luas.
No entanto, no matadouro improvisado, a azáfama era grande. E ali perto improvisou-se também um mercado, onde os visitantes e taberneiros de ocasião iriam abastecer-se enquanto durassem as festividades.
A viagem fora longa e as ruas envolventes estavam particularmente intransitáveis.
Não só pela pouca largura das mesmas, pois haviam sido idealizadas para permitir a passagem de apenas uns poucos transeuntes a pé.
Estavam, desta feita, totalmente congestionadas pela enorme afluência de cavaleiros, escoltas e comitivas. Estas últimas faziam-se transportar em carruagens, seguidas pelos pagens e aias, que levavam os mantimentos, trajes e armas em carroças bamboleantes, que mal cabiam em tão estreitas calçadas. Por fim, seguiam os servos, a pé, conduzindo as matilhas que seriam utilizadas, caso fosse necessário empreender alguma caçada. Afinal, manter o estômago cheio era tão ou mais importante do que manter o prestígio.
Acrescentemos agora centenas de ovinos, caprinos, bovinos, suínos, galináceos, anatídeos e espécies cuniculares, para ali deslocados, a fim de proporcionar alimento a tamanho séquito. E, é claro, os muares e asininos, a montada da plebe.
Formou-se tal camada de excrementos sobre as lajes, que cada comitiva levava dois servos para proceder à limpeza, antes da caravana dos seus amos passar. As altas patentes militares, os clérigos, os senhores de sangue azul, não iriam suportar ver os seus longos mantos e polainas conspurcados por dejectos. Era dia de gala, iriam estar na presença da Família Real, pelo que tinham de estar impecáveis e sem odores estranhos. Para além do mais, alguns tinham chegado ao extremo de tomar o banho anual e empoeirado as perucas, propositadamente para tão importante acontecimento.
Avistando o enorme recinto desportivo, a Condessa de Saldanha deteve-se por momentos.
A área envolvente da arena estava repleta de tendas, fidalgos, escudeiros, armaduras reluzentes de tão polidas, cavaleiros de elmos com penachos das mais variadas cores, e belíssimos especimens equinos, devidamente limpos e arreados.
Prescrutando a arena e as bancadas com o olhar, Sccm buscava a Baronesa da Torre de Moncorvo, D. Biat, agora Princesa, muy distinta representante das famílias Gama, Monforte e Monte Cristo neste Torneio, e o seu amado esposo, o Príncipe D. Vitor Pio, Conde de Avintes e Visconde de Santo Tirso, que hoje seria também o seu escudeiro. Buscava ainda a Condessa do Porto, D. Luna, outra das favoritas da competição, e também com uma larga experiência nas lides militares.
Uma pequena multidão aglomerava-se no local e o burburinho subia de tom. Alguns faziam já apostas sobre quem seria o vencedor.
Os sinos da igreja repicavam ruidosamente ao longe, a cada hora, marcando o compasso do tempo que passava vagarosamente.
As bancadas começavam a encher-se dos mais curiosos espectadores. O Clero e a Nobreza ocupavam os melhores lugares, sob um toldo que os abrigava do sol tórrido da tarde. Os plebeus tinham de contentar-se com os bancos mais periféricos e distantes, onde já não conseguiam ver ou escutar grande coisa.
Mas tal não diminuía o seu entusiasmo, pois era dia de festa. E nos dias de festa não só não trabalhavam, como ainda tinham uma refeição melhorada. Hoje, em vez do pão duro e bolorento a acompanhar uma aguada tigela de caldo, iriam degustar carnes gordas, bem temperadas e suculentas, e deixar o vinho escorrer pelas goelas livremente, numa qualquer taberna, até a visão ficar turva, as palavras soltas e o equilíbrio instável.