Um pouco atabalhoado, logo se via ali ao virar uma esquina alguém a arfar em um pequeno trote (mesmo por que não se era um menino a correr algures, mui distante disto estava); alguns esbarrões eram inevitáveis a ponto dalgum citadino soltar contida praguejada, porém nada que gerasse comoções ou exagero.
Iago Brais era um trovador galego que perambulava em Valladolid naqueles dias de visita de Sua Majestade ao reino vizinho, encontrando-se com Aristarco nas tabernas e nas praças, quando então assim surgiu amizade e companheirismo das cousas dArte, como composição, música e rimas; não haviam chegado a se apresentar juntos por uma mera questão do acaso, já que se faria boa combinação de flauta e alaúde, mas se encontravam regularmente para prosar assuntos em comum.
Durante o regresso da comitiva lusitana, o galego solicitara um lugar de viagem naquela boa embarcação Amoras e evidentemente Aristarco pouco poderia fazer exceto conversar com o amigo Eudoxio se isto seria ou não possível, dado que a nau estava dedicada aos serviços da rainha lusitana.
E Dom Eudoxio mui tranquilamente tratara com o bom capitão Querobim, tudo estava bem e discretamente resolvido.
No regresso ao Porto, separaram-se momentaneamente até que o segrel (como se dizem naquelas plagas galegas) soube da detenção do amigo lisboeta na masmorra condal, uma estória engraçada logo notara, e já vinha a acudir no que fosse possível, com uma carta em mãos da guilda local de trovadores; mas se isto resultaria algo vantajoso ou não, já não tinha certeza alguma.
De sorte que não foi necessário, bem compreendeu, porque já colhera notícias com alguma sentinela à entrada da amurada, sobre o sulino amigo, já mui bem livre, por força e ação desconhecida de Iago (apesar de deduzir algo próximo da verdade).
Parecia também que a sentinela ouvira prosa alhures entre o recém liberto com um amigo que viera retirar-lhe daquel fado, e mais duas donzelas acerca duma breve passagem à taberna; o galego já arriscava palpite na taberna da redondeza do velho Ezequias, uma (das muitas) que conhecia bem, assim como não menos bem conhecia a terra portuense.
Lá se foi o segrel tranquilamente e sem acelerar passada, porque não demoraria tanto para chegar em tal taberna e encontrar o trovador moçárabe com seu amigo, assim como com duas donzelas e um distinto senhor a palrarem com semblantes abertos e leves.
Dirigiu-se a eles e se apresentou, com seu sotaque galego peculiar; Aristarco sorriu com aquele encontro convidando o segrel para juntar-se de imediato.
Quando em prosa que vai-e-vem soubera sobre aquel senhor John Rafael, distinto gentil homem da Corte, a falar dum mote sugerido, e também da inda breve hesitação de Aristarco (talvez um pouco dolorido por noite mal dormida e espírito cansado); tomou assim a palavra:
- Peço-vos licença e ao bom trovador del al-Gharb para algo compor sobre este mote, visto que ele mais precisa dum trago neste momento, e um alaúde novo noutro!
Aristarco riu-se um pouco sem jeito e fez uma mesura a deixar à vontade aquel outro segrel na mestrança, afinal estava mui bem alimentado por taberna e com guarida mais sossegada que não uma cama de prisão, vedes a diferença do que estar em barras adentro pode bem causar.
Iago Brais sacou de seu alforje uma flauta que estava envolta dum belo rubro pano aveludado e fez uma frase melódica animada e alegre, que ficaria mui bem acompanhada de pandeiretas com soalhas ou até mesmo castanholas.
Então declamou (apesar de que poderia tão bem ter cantado):
REDONDILHA
Mote
Cruel lobo, mais feroz de sua matilha,
Morde incauto que desafia a família.
Voltas
Bem procurai algo saber
Da muy clara natureza,
Para razão logo dar
Co prudência vai caber,
Tereis tão que perceber:
Um lobo em sua crueza
Não se fará apiedar.
Vos cuidai se provocardes
Ira daquela fera,
Nas cousas de pertença;
Território cercardes
Ou da matilha altercardes,
Üa verdade s espera:
Ganhareis a desavença!
E não equivoqueis jamais,
Não toqueis família
Co tão honra exuberar,
Senão tereis dores mais:
Quando reptado demais
M noite ou vigília,
Lobo irá dilacerar.
E assim se marcou aquel estilo que enquanto fazia passagem declamada entre os versos e o mote intercalados, fraseava sua flauta animadamente.
Iago Brais ao terminar a voz e canção, então fez uma vênia ao grupo reunido, e uma inda mais longa ao senhor John Rafael para dar préstimos do mote proposto; rapidamente se dirigiu ao mestre-taberneiro para solicitar um jarro de rum para os senhores, apenas por mais um trago inda antes do horário da refeição, além de chás para as donzelas.
Decerto pensara que faria bem o recém liberto a molhar garganta com algo mais condigo do que o sabor hospitaleiro de masmorras...