A viagem não poupara ninguém quem quer que fosse, de sua cabeça aos pés, de seu senhor ao noviço cavaleiro que escoltava e transportava materiais e cousas, parafernálias para o vulgo que pouco ou nada entenderia sobre aquela missão oriunda das terras mais ao sul, daquela lusa gente que os próprios sarracenos mui bem conheciam a chamá-los de mustarab quando não muladíes aos que se faziam fluir nos trejeitos orientais.
Contudo, se por um lado havia tamanhas particularidades com distinções nos acentos, palavreados e outros costumes, nada mais estranho era se notar que algo invisível se fazia dar liga, porquanto amistosidade imediata entre aquela amálgama de lusos de diferentes procedências já se fazia.
Quem há de compreender isto tudo, que o explique, quando mui outros povos por aí alhures longe estão deste senso, porque deveras se encontram em cizânia rude até discórdia fratricida, que Jah tenha piedade deles.
Aristarco não deixara de notar naquela campanha (não de guerra, mas missão), o ímpeto dos cavaleiros que escoltavam as carroças, mesmo até seus condutores (também da soldadesca), naqueles esforços de vencer terreno por vezes mui exigente e difícil, a cuidar dos animais de tração e toda sorte de esforços que aparece nesses momentos.
Afinal, inusitado e acaso também se encontram no horizonte de viajor, degredado, senhor ou cavaleiro, nobre e plebeu, miserável ou endinheirado: a vida é uma surpresa a cada virada de curva no caminho ou em cada estalagem de vila e acampamento.
A soldadesca estava lacônica, apesar de quando em quando um urro ia e vinha por conta de montarias e bois de carroça; esmeravam em cumprir dever, não em sorrir naquela jornada. Mui se encontrava em jogo.
O trovador já vira cousa assim naquelas terras averroístas do al-Gharb, Sebta entre outras.
Vira campanhas de tomadas dalgumas praças fortes africanas pelos portucalenses, quando impedido de usar espada por ser meramente um escriba ou escrevinhador de registros, várias vezes se dirigira aos combatentes abatidos ou estafados após enfrentamento, ou na noite que antecedia o embate para ver estados despírito, a serem estimulados com canção e boas memórias.
Essas cousas das campanhas são assim mesmo, oras.
Resolvera medir os ânimos daqueles, mas em segredo: saiu com o alaúde às costas da hospedaria na calada e queda do céu escuro, indo ao encontro das fogueiras do acampamento que não estava tão distante dali, onde os cavaleiros se encontravam sentados a conversar em tom baixo, alguns a terminar o repasto, outros a arrumar os trens de dormir, naquele aprumo típico que antecede o descanso para o novo dia.
Quando chegou, saudou-os e sentou ali ao lado para experimentar um naco de toucinho que ainda estava quente, a fazer expressão boa pelo gosto que tinha.
Um jovem, talvez um escudeiro (já com curiosidade no rosto, como todo jovem sustém facilmente), subitamente puxou conversa com o trovador, inquirindo-lhe sobre a cama da hospedaria e pequenezas sem importância e aos poucos entabularam prosa.
Foi quando aquele jovem dissera que ouvira Aristarco falar com seus senhores, sobre conto de estrangeira terra, que alguns outros se interessaram pela estada do trovador ali. E disto, com o alaúde dependurado ao corpo, foi quando alguém deu ideia que cantasse algo, ou narrasse história bretã ou moura, ou qualquer de gran monta, uma epopeia.
Os homens estavam apenas cansados, seria bom arrancar-lhe um riso então.
Aristarco notava o brilho dos olhos dos cavaleiros, pareciam com os mesmos que vira em Tanja ou Sebta africana e fez gosto consigo em seu íntimo, porque nada mais humano do que alimentar esperança em dias bons ou ruins, em dias exigentes ou enfastiados.
Talvez, por um momento, isto unisse a todos os homens, lusos, castelhanos, mouros, bretões, flamengos e francos, itálicos e africanos, orientais e sabe mais lá que povo criado por Jah nesse velho mundo.
Mas negou trovador a fazê-lo, o que fez alguns se espantarem (quase se indignarem até) diante um pedido tão simples.
Respondeu o trovador que pedia licença para não cantar nem de mouro ou bretão, tampouco franco, itálico ou saxão; escusou-se até mesmo de gregos e troianos, romanos e gauleses, porque queria lembrar um outro conto, que se não fosse epopeia, não lhe caberia menor honra do que aqueles que ficaram na história.
Ficaram mui atentos sem entender bem o que Aristarco queria dizer com aquilo tudo, mas se resignaram a ouvir o que dali se sairia naquele dedilhado de alaúde rebuscado (mourisco).
E se fez uma canção assim:
REDONDILHA
Campanha
Mote
Cavaleiro na campanha não tem fado,
Quando cumpre dever, é bem honrado.
Voltas
Escuta el trovador
Na rima desta canção,
Sabedoria ganha:
Não há mal abrasador
Daquel que é cumpridor
Do dever com atenção,
Que finda bem campanha.
Não me lembro de bretão
Nem flamengo no tratar
Franco ou sarraceno
Grego, romano então
Mas gente doutro sertão:
Pois haja de acatar
Este tão gran aceno.
Eis üa trova com unção,
Em preclaros agoureiros
Que não esqueças porém:
Na virtude sem sanção
De muy honra faz menção,
Co tamanha distinção
Que são os cavaleiros,
DAlcácer ou dOurém.
Então os sorrisos abriram-se bem mais largos, felizmente.
Aristarco sabia mui bem do cumprimento de ordens e como aqueles cavaleiros se disporiam até o fim que se fosse exigido (até morte, quiçá), na segurança e execução dos objetivos estabelecidos, não se tinha quaisquer dúvidas.
Só havia um pouco de cansaço e preocupação, é verdade.
Mas mal não faria alentar um pouco mais o coração, porque para este, nem sempre uma boa cama ou boa comida há de dar jeito quando só trata do corpo, e se não se é tempo de desembainhar lâminas e escorar em escudos, atiçar cavalo ou algo que o valha, se pode algo bom inflamar com boa trova que alimenta brio na campanha.
O trovador repetiu o mote cantado para que não esquecessem quando o espírito precisasse dalguma boa energia: porque se por um lado se roga a Jah que cuide bem do dia damanhã, há que se rogar a si próprio ânimo, destemor e resiliência em agudo, agastado, enfastiado ou desafiado instante.
Dormi tranquilos, bons cavaleiros, porquanto jornada segue e há que se realizar os fins com gestos probos, diligentes e honrados.