Martinho
Martinho se divertia deveras, naqueles dias em Montemor, afinal tudo o que lhe apetecia estava em curso: a companhia apreciada de seu mestre, poder ajudá-lo no ofício, como limpar e carregar o alaúde, levar o alforje com apetrechos para registros (muitos pergaminhos e tinteiro de campanha, como dizia Aristarco), passear livremente nos momentos de folga, assim como comer e beber mais fartamente, já que o mestre-trovador se comportava mais abertamente quando não estava em Setúbal; talvez os ares de Montemor ou algures trouxessem mais benefícios para Aristarco do que a tranquilidade da pacata Setúbal.
E finalmente pudera se apresentar pela primeira vez, com uma pandeireta em mãos: só isto já valia gran parte da viagem, ora pois, um músico, um músico (mas não ainda, trovador). Uma parte do caminho estava conquistada, só tinha olhos a isto; não se sabia a dimensão do broto que rebentava em nova vida debaixo de sol e chuva, mas finalmente rebentava, fosse como fosse.
Bem, as exigências de estudos e tarefas eram bem maiores na terra-natal e Martinho já pensava em instigar cada vez mais Aristarco a percorrer caminhos mesmo por que nada mais agradável que aquele novo tipo de vivência do que ficar estudando música durante boa parte do dia. Contudo, não entendais mal: o aprendiz-de-trovador era aplicado e dedicado (excetuando aqueles momentos preguiçosos que os infantes parecem acometidos), mas que maior alegria poderia ser do que estar onde movimentos e hábitos fossem diferentes e desprovidos de rotina?
Mas também não fora mui feliz ao estimular sobre a festa de Chaves, ainda mais quando o trovador dissera algo como Não dá! Ainda não sou espectro ou alma penada para estar em dois lugares tão distantes em tão pouco tempo...; Martinho precisava entender melhor em como agir nestes assuntos, bem percebeu com a expressão não mui afável do outro.
Também ficava feliz Martinho, pelo próprio fato de estar em contato com outro povo que não fosse sua vila, quando novos tipos de ideias e temperamentos pareciam aflorar aqui e acolá sem que fosse algo esperado ou conhecido, como seus pais a repetirem ladainha de rogos à Jah antes de dormirem, ou um senhor ranzinza que ficava em uma esquina próxima ao porto conhecido como velho brabo a resmungar constantemente (e às vezes querer amedrontar com caras e bocas e rugidos), ou aquela senhora que fazia doces e tortas e se portava como um leão quando deixava alguma forma à janela: ai de qualquer menino que passasse naquela banda da rua, mui próxima da Casa do Povo...
Aqui em Montemor era tudo diferente, porque podia esperar de tudo, qualquer surpresa (rogando que fossem apenas boas). Se bem que convenhais, lhe era mui aprazível sentir o odor que vinha da janela de casa da senhora Joaquina... torta de maçãs e cousas afins... Sem contar quando Dona Antônia da Padaria às vezes lhe dava pãezinhos às escondidas (este segredo, levaria consigo até debaixo da terra, se fosse preciso).
É para lamber os beiços de qualquer um mesmo, crede nisso.
Quando então por uma praça qualquer, encontrou um ancião sentado em uma roda de carroça tombada, rodeado de várias crianças de idades e tamanhos diferentes. Os menores que Martinho, aqueles mais miúdos, ficavam sentados com expressão atenta e excitada a cada palavra que proferia aquele velho homem, enquanto que os maiores que Martinho se mantinham de pé e não menos com olhos e ouvidos fixados como se fossem bichos de caça ou algo que o valha.
O ancião parecia alguém de posses (certamente mais do que seu mestre), mas com algum tipo de infinita paciência que fazia aquela trupe ali permanecer enquanto poderia estar a cuidar de seus afazeres do que ficar conversando com crianças. Martinho, apesar de menino, era mui atento por natureza, ainda mais agora quando Aristarco lhe dizia e ensinava sobre traduzir na razão, da pessoa a feição; tudo mui proveitoso, claro, e Montemor finalmente parecia valer como um grande campo para validar (ou não) o que aprendia com seu mestre. E muitas cousas pareciam suster razão.
Martinho começou a prestar atenção e por felicidade notara que o homem acabara dali chegar e que estava a começar uma narrativa, e diante o silêncio daqueles todos de sua igual geração bem nova, supôs que aquilo acontecia de quando em quando e não era algo isolado: todos pareciam respeitar cada movimento e expressão do ancião e até chegando a suspender respiração, tamanha atenção!
Foi quando o velho homem começou dizendo que o conto daquele dia, ele mesmo ouvira isto dalgum erudito importante da vila montemorense que ali não mais já morava, e que histórias eram assim mesmo, ora se é contador, ora se é ouvidor, e que todos eles ali que o rodeavam, deveriam algum dia tomar as rédeas do animal, melhor dizendo do conto , e passar à frente a tradição.
Martinho se aproximou discretamente e sentou-se ao chão, enfeitiçado pela voz empostada do homem de cabelos bastos aos lados, mas calvos no topo, com barbas encanecidas mui bem aparadas. Afiou ainda mais os ouvidos e se atentou a fixar o máximo de sua memória, do que estaria prestes a ouvir.
Estava ao seu lado uma menina de olhos verdes e cabelo cor de palha, de rosto bonito que agradou muito a Martinho. Ela olhou para ele em breve momento e o aprendiz de Aristarco sorriu naturalmente; o que fora recíproco, quando logo viu a feição amistosa dela.
Ambos voltaram seus olhos ao ancião, sem deixarem os sorrisos fugirem...