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A Caçada

Ana.cat




[Paço da Ribeira, Lisboa]

Ana Catarina encontrava-se mais uma vez sentada num banco de mármore, cuja pedra já começava a mostrar sinais da humidade do último inverno tal a quantidade de líquenes e outros fungos que se apoderaram dele, à sombra de uma antiga árvore a rainha mirava o Tejo num olhar indistinto e vazio de sentimento.
O rio estava particularmente pouco movimentado naquele dia, os navios mercantes eram escassos e só os pescadores rasgavam as águas na esperança de conseguirem o seu sustento diário. Ao longe ouviam-se os pregões do porto e do mercado, no primeiro ainda decorriam as obras de ampliação pelo que as vozes eram maioritariamente rudes, grossas e carregadas de brejeirices, já as do mercado eram estridentes e femininas a anunciar a venda de todo o tipo de mercadorias... alimentos... ferramentas... animais... tudo de excelente qualidade, assim pareciam as vendedoras assegurar.
Ana por momentos fechou os olhos e imaginou-se em criança no meio do mercado de Alcácer do Sal, quase sentia o cheiro característico do Sado e dos seus arrozais. O cheiro forte do peixe acabado de pescar e a ainda "a dar ao rabo" nas redes dos pescadores... sonhou que estava montada sobre o pequeno potro que lhe pertencera quando ainda não era suficientemente crescida para uma égua. Ao seu lado cavalgava um homem idoso de barbas brancas e emaranhadas nelas próprias, estava vestido de negro da cabeça aos pés e o único sinal de cor era um anel com uma pedra rubra que trazia num dedo da mão direita. O idoso dizia-lhe algo, mas Ana não se conseguia recordar e acordou pouco depois. Deu por si a procurar na sua mão direita o mesmo anel com que sonhara. Revirou-o no dedo e observou os seus detalhes no ouro e a pedra com um leão de cauda bifurcada n'ela entalhado.
Colocou de novo o anel no dedo e mirou novamente o horizonte, a sua vista estava bloqueada por uma criada do Paço que varria os caminhos de terra batida do jardim, ficou a observa-la por alguns momentos até que um vulto lhe surgiu no canto do olho, de imediato o encarou, era Eudóxio. Pela sua posição pareceu-lhe que ele já ali deveria estar há algum tempo, com aqueles olhos expressivos e aquela linha da boca que sempre parecia estar a sorrir, embora nem sempre os seus olhos acompanhassem tal expressão.


- Eudóxio... - tentou esboçar um sorriso - Que surpresa... aconteceu algo? - perguntou num tom arrastado como se não tivesse grande interesse em saber a resposta.
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Eudoxio
A rainha mirava atentamente o horizonte e o que se passava à sua frente, parecendo perdida em pensamentos, pelo que Eudóxio, que se deslocara até ali no seu típico caminhar rápido e discreto, deixou-se ficar parado, esperando até que D. Ana Catarina de Monforte nele reparasse, evitando assim interromper o seu descanso ou raciocino. A espera mostrou-se breve, pois rapidamente a rainha notou na sua presença.

- Que surpresa... aconteceu algo?

- Vossa Majestade - fez uma rápida vénia e prosseguiu - Trago-vos vossa correspondência... - estendeu as cartas que trazia consigo à rainha, que respondeu com uma tentativa de sorriso e um ligeiro suspiro que, aos menos atentos, passaria despercebido.

Melhor do que conhecia D. Ana Catarina de Monforte, a Rainha, Eudóxio conhecia D. Ana Catarina de Monforte, Matriarca da sua família e sua madrinha de baptismo, conseguindo aperceber-se, apesar do esforço dela para o disfarçar, do cansaço e da infelicidade que se abatiam sobre a rainha. Há já alguns dias que assim andava... O peso da Coroa, evidenciado por deveres e responsabilidades muitas, ia-se mostrando cada vez maior, roubando-lhe o tempo e descanso, e sugando-lhe a vivacidade.

-Vossa Majestade, tenho andado a pensar... que achais de se organizar uma caçada? - lembrou-se então de sugerir -Algo discreto, para a família apenas... Seria bom para voltar a ver e conversar com familiares com os quais não temos tido grande contacto e sempre vos permitia desanuviar um pouco do exaustivo quotidiano que levais aqui no Palácio. Que achais?

Viu então, com alegria, a rainha esboçar um sorriso, o único sorriso genuíno que, até ao momento, naquele dia esboçara.
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Ana.cat
A visão das cartas e respectivos selos provocaram um arrepio nela. Sem as ler já imaginava o seu conteúdo... petições, notificações, petições, notificações, petições... enfim, após cerca de dois meses de reinado parecia-lhe que tudo se resumia àquilo. Esses dois meses tinham-lhe feito mais mossa que os meses de guerra em França. A sua pele ganhara um tom acinzentado e os seus olhos verdes pareciam ter perdido a sua expressividade e alegria.
Não só o trabalho a tinha conduzido àquele estado, a razão principal fora mesmo a notícia que havia recebido há quase duas semanas. Trágica notícia que lhe chegara às mãos numa carta selada tão idêntica àquelas que Eudóxio trazia, só de as olhar Ana Catarina relembrava o dia em que tomara conhecimento da morte do seu homólogo castelhano. Dizia-se que tinha padecido a uma infecção... mas como tal foi possível? Perguntava-se a rainha vezes sem conta no seu luto. Carolum Borja era saudável e ainda relativamente jovem, vivia como um rei que muito merecidamente era e nada lhe faltava.
Com o tempo as suas lamentações transfiguraram-se em suspeitas. Dizia-se que o Marquês de Gondomar y las Islas poderia ter tido mão na morte do rei, afinal era sobejamente conhecida a inimizade que nutriam um pelo outro...

Ana tentou colocar de parte aquelas ideias negativas e encarou Eudóxio, mas não as suas cartas. Provavelmente era coisa da sua cabeça, mas a cera que as selava pareciam-lhe tomar a forma do rosto de Carolum.


- As cartas... por favor, começai a trazê-las com o selo quebrado, não vos tenho segredos e com isso poupáveis-me a tão estranhas... visões - acrescentou num tom mais baixo, não fosse alguém que não Eudóxio ouvir e pensar que a rainha estava demente.

O secretário real nada disse sobre aquilo, provavelmente teria conhecimento do estado em que Ana Catarina se encontrava nos últimos dias e era preferível manter isso dentro dos muros do Paço. Apesar dela não ter razões de queixa até aí, a Monforte sabia perfeitamente que os corredores do Paço se alimentavam de mexericos sobre os lados mais sombrios ou pecaminosos dos grandes senhores que os percorriam no exercício das suas funções.

Ela pegou na primeira carta e leu-a de cima para baixo no intuito de captar o essencial e o mesmo fez às restantes antes de as devolver a Eudóxio.

"Depois respondo", pensou para si num pensamento que em poucos segundos foi relegado para um canto obscuro na sua cabeça.

Quando então se preparava para se levantar e voltar ao interior do Paço, onde o trabalho a aguardava indubitavelmente, o Faro de Monforte dirigiu-se a ela novamente.


-Vossa Majestade, tenho andado a pensar... que achais de se organizar uma caçada?

Por momentos Ana mirou-o sem expressão no rosto, como já se tornava hábito, estava perdida ainda nos seus pensamentos e aquela referência a caça ainda a baralhou mais.

- Algo discreto, para a família apenas... - continuou ele - Seria bom para voltar a ver e conversar com familiares com os quais não temos tido grande contacto e sempre vos permitia desanuviar um pouco do exaustivo quotidiano que levais aqui no Palácio. Que achais?

A ideia de rever a família, que há muito não contactava visto que não a haviam acompanhado até Lisboa para residir ali no Paço, alegrou-a por dentro e por fora. Sentiu um súbito ânimo a tomar-lhe o espírito abatido e melancólico que nos últimos dias a acompanhava. Esse ânimo também se manifestou por fora pois viu-se a sorrir jovialmente sem para tal ter feito qualquer esforço.

- Uma caçada com a família? Apreciei a sugestão, embora tenha que confessar não tenha grande aptidão para a caça - calou-se por momentos para pensar, pois ao sair para caçar estaria usar precioso tempo que poderia ser utilizado para adiantar trabalho... mas por fim as saudades da família e o ânimo causado pela singela ideia de os rever a todos foram preponderantes na sua decisão - Sim, providencie os pombos para Ourém, Alcácer e a Braga, que tal caçada avance ainda esta semana! Poderá ser mesmo aqui na zona de Lisboa, julgo que a mata de Monsanto nos providenciará bons momentos e disposição.
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Eudoxio
- Uma caçada com a família? Apreciei a sugestão, embora tenha que confessar não tenha grande aptidão para a caça. - o Secretário Real nada disse ao ouvir as palavras da rainha, pois, além de também ele não ter grande aptidão para caçadas, não queria interromper e corrigir a rainha, que tivera oportunidade de ver combater em terras bretãs e que, por isso, sabia que a falta de aptidão para a caça não poderia ser assim tão grande para tão experiente e hábil guerreira.

- Sim, providencie os pombos para Ourém, Alcácer e a Braga, que tal caçada avance ainda esta semana! Poderá ser mesmo aqui na zona de Lisboa, julgo que a mata de Monsanto nos providenciará bons momentos e disposição.

- Considerai-o feito, vossa majestade - respondeu, curvando a cabeça, pedindo de seguida licença para se retirar - Com vossa permissão...

E, pelo mesmo caminho que percorrera até ali, regressou ao Paço, onde tratou de preparar as cartas que seriam enviadas para distintos pontos do reino, em busca dos Monforte. As missivas a enviar eram várias, mas era um trabalho que não custava pois Eudóxio imaginava-se já, alegremente, a rever todos esses seus familiares e de com eles pôr conversas em dia, principalmente com seus irmãos que já há algum tempo não via. E teria oportunidade para o fazer ainda na presente semana, o que tornava crucial que as cartas fossem celeremente escritas e enviadas, tal como o Faro de Monforte se esforçava por fazer...
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Ana.cat



[Paço da Ribeira, Lisboa]


O farfalhar das saias das aias começavam a irritar profundamente a rainha. Um ruído quase surdo mas insistente e, ao que tudo indicava, incessante. Ana tentou inicialmente ignora-lo mas a sua paciência estava para tudo naquele dia, menos para ser testada.

- Por Aristóteles! - explodiu ela por fim - Fazei-me o favor de não vos arrastar pelos aposentos?! Será pedir muito? Ou sois demasiado soberbas para tal?!

As aias miraram-na por alguns segundos, surpreendidas com o súbito comportamento da rainha, mas quase de imediato entre-olharam-se como se estivessem a mexericar contra Ana Catarina por telepatia.
Ela suspirou, desta vez mais irritada com o seu comportamento que com a atitude das aias.


- Bom... desculpai-me pela minha falta de cortesia. Mas trazei-me roupa prática, para montar e caçar.

As aias saíram dali com as saias presas nas mãos para não fazerem barulho com as sedas e foram buscar a roupa pedida pela rainha.
Ana aproveitou a pausa para espreitar da janela dos seus aposentos, lá fora já se reuniam as montadas e a guarda real parecia aguardar pacientemente a sua descida. Viu também Eudóxio entre eles, uma das suas mãos estava enluvada com grosso couro e segurava um falcão.
Recordou-se então da última vez que estivera naquela posição, fora na sua aclamação e tanto o tempo como a sua disposição estavam bem mais luminosos.

"Não penses nisso agora", pediu a si própria. "Em breve vais rever a tua família, anima-te!". Pensar neles resultou, sentiu-se revigorada e pronta para enfrentar as durezas do que a esperava na mata de Monsanto.

As aias chegaram pouco depois com a sua roupa, calções, camisa e uma enorme capa de lã e ainda um cinto e umas botas de couro que lhe chegavam ao joelho. Ela vestiu tudo sem um apontamento e retirou-se quando se viu pronta. Caminhou então até à saída do Paço e aí encontrou Eudóxio, também ele devidamente trajado para a ocasião.


- Estais muito galante, por momentos duvidei se iríeis ao encalço de bestas ou de damas - sorriu-lhe e olhou em redor - Só vejo aqui a guarda real e vós, onde se encontram os nossos familiares? Já chegaram? O falcão é para mim, espero, não tenho qualquer desejo de perseguir lebres à lança - julgou ter feito demasiadas questões e calou-se.
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Eudoxio
Eudóxio olhava o falcão, o falcão olhava Eudóxio... Por mais que o avisassem que o animal estava treinado, o Faro de Monforte continuava a ter algum receio dele e por isso não retirava os olhos de cima daquele bicho, temendo que ao mínimo sinal de desatenção ele o atacasse com o seu pontiagudo bico, por Jah e pela natureza gerado para matar suas vítimas, e as suas aguçadas garras. O falcão, por sua vez, observava atentamente aquele humano que nunca antes vira, sentindo-se ameaçado com ele sempre a olhar para si. O falcão temia Eudóxio, Eudóxio temia o falcão...

A rainha estava, claramente, muito mais alegre do que tinha estado nos últimos tempos e tal mais claro foi quando, ao chegar a saída do Paço onde Eudóxio e a Guarda Real a esperavam, brincou e "disparou" algumas perguntas, sempre com um sorriso no rosto.

- Vossa Majestade... - fez uma vénia, mantendo-se sempre atento ao falcão, observando-o pelo canto do olho - Os nossos familiares ainda não chegaram, mas acredito que não tardarão muito mais e sim, o falcão é vosso. A mim de pássaros já basta o corvo que tanto gosta de me enervar de vossa filha... E, respondendo a vossa provocação, nunca se sabe o que o dia nos pode reservar e eu gosto de estar preparado...para todas as eventualidades. É, portanto, crucial que eu ande galante... - sorriu - Eu diria que Vossa Majestade estai também bastante bem, contudo não sei se seria adequado de minha parte tecer comentários de tal tipo.
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Ana.cat
Ana Catarina devolveu um sorriso gentil a Eudóxio, o optimismo e a limada cortesia do primo punham-na bem disposta, não fora ele e julgava ela que já teria enlouquecido.

- Os meus trajos são simples e adequados à actividade que vamos praticar - abriu os braços e auto-analisou a sua roupa - De facto poderia ser bem mais opulenta, mas infelizmente não há muita variedade de roupas de caça para mulheres... - encarou-o novamente - Mas agradeço-lhe a gentileza, espero que as suas roupas surtam o efeito pretendido - piscou-lhe o olho divertida enquanto com uma mão segurava as rédeas dum cavalo comum oriundo das estrebarias reais - O Arzhur não é animal de caçadas... terás de me carregar tu - disse ao cavalo, como se este a pudesse entender, enquanto lhe dava pequenas palmadas na crina.

A Monforte saltou para cima do animal e puxou as rédeas para si, ali mesmo fez-lo dar uma meia volta para ficar virada de novo para Eudóxio e para o falcão que ele tão cuidadosamente segurava, apesar de a presença do cavalo assustasse um pouco a ave.


- Tapai-lhe a cabeça, a não ser que quereis ficar sem olhos - sorriu - Rogo-vos que não vos desfaças deles tão depressa, são parte essencial no vosso charme.

A rainha voltou a picar o cavalo e este deu meia volta em si mesmo. Ergueu a mão para os cavaleiros da guarda real para que fosse iniciada a marcha até à entrada do Paço, onde esperava poder encontrar os seus familiares.
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Leonna
Leonna sentia o suor descer pela têmpora, a égua árabe que comprara em Valencia, corria ferozmente pelos prados. Ao longo da jornada descansara em algumas cidades ou montara acampamentos em locais estratégicos. Leonna estava feliz pois faltava pouco para chegar ao castelo da família e finalmente sentiria-se em casa. Sua feição tornara-se um tanto severa, quase militar, isso se deve ao que vira na Espanha, mas é passado, as únicas lembranças que devem permanecer sãos os amigos que lá deixara.

Se aproximando do castelo, vê ao longe uma caravana, sua mãe montada imponentemente em um alazão, em seus pensamentos a certeza de que se tratava realmente de uma rainha. Fincou os calcanhares na égua e esta correu com o vento, avistou também o primo Eudóxio, com uma bela espécime de ave em seu braço, bradou a plenos pulmões

- Mamãe, Eudóxio... - Ao se aproximar notou o olhar severo da Monforte e que puxara bruscamente as redeas do cavalo, acabou abaixando a cabeça diante do olhar de sua mãe.

- Tanto tempo longe, e voltas com rudes modos. - Ana Catarina balança negativamente a cabeça.

- Perdão Majestade, mas saudade falou mais alto mam...er majestade.- engole a seco e faz uma leve mesura com a cabeça.
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*Quando uma leoa ruge, o leão abaixa a cabeça em reverência"
Tocha




Padre Tocha, estava em Lisboa já fazia uns dias, ajudava na edificação do porto de Lisboa, e tinha ouvido na Taverna da Casa do Povo uns rumores de havia uma caçada programada para breve e o melhor era, que a ideia tinha crédito na sua sobrinha......

Ao chegar a estalagem tinha uma carta com o selo Monforte e um convite para a caçada.

Entre os seus afazeres, e entre estes não estava as idas à Taverna, Padre Tocha conseguiu preparar as suas vestes e ainda tratar de seu fiel cavalo.

No dia tirou o cavalo e um burro que puxava a carroça, a precisar de alguns arranjos, foram muitos os kilometros que fez na sua viagem pelos Reinos da França e Espanha.... A carroça tinha nela umas barricas e duas arcas...

- A ver se a familia gosta???? - diz a murmurar


Uns dias antes tinha enviado um pombo correio, a uma beata em Alcacer, do seu tempo de Padre nesta cidade, uma beata especial por quem nutria simpatia e esta efectuou uma visita especial a Adega Paroquial e a encomenda tinha chegado no dia anterior.

Apercebeu-se que as vestes que envergava eram as mesmas que usou durante as batalhas que travou em França, nada melhor para uma caçada, algo coçadas e recosidas...

Apressou-se a chegar ao Paço e ao aproximar-se reparou que esta a Guarda Real e que estes começavam a fechar a passagem....

Abrandou e erguendo-se na sela, avistou ao longe a sua sobrinha, tirou o chapeu da cabeça e acenando com ele, chamou:

- ALTEZA ANA.... sobrinha, dizei a estes bons moços que não vos trago mal.....

Olhando para baixo viu, que os guardas mais perto tinham parado e que prestavam atenção a possiveis palavras da Rainha....


Ana.cat
Ana Catarina mal tinha tocado o cavalo para tomar a marcha quando surgiu à sua vista a sua filha adoptiva. Enquanto o tio montava pacientemente o seu burrico Leonna cavalgou na sua direcção duma forma que a rainha considerou pouco própria para uma senhora, apesar de estar feliz por a rever, os seus limados hábitos do Paço e a cortesia nele exigida impediram a demonstração de tal alegria na sua face.

- Mamãe, Eudóxio... - disse ela quase caindo com o cavalo em cima de si.

A Monforte fitou-a com com a testa franzida e um olhar fulminante.


- Tanto tempo longe, e voltas com rudes modos - disse num tom marcadamente reprovador

- Perdão Majestade, mas saudade falou mais alto mam...er majestade - justificou-se, fazendo de seguida uma vénia.

"Ao menos encontrou cortesia para uma reverência", aquilo colocou-a mais bem disposta, mas não teve tempo de lhe responder, pois logo de seguida deu-se a chegada de Tocha no cimo do seu burrico.

- ALTEZA ANA.... sobrinha, dizei a estes bons moços que não vos trago mal... - exclamou o clérigo, rodeado de guardas.

Ana Catarina já não via o tio desde a partida da Bretanha, onde ele ficou a estudar e a aprofundar os seus conhecimentos teológicos para depois regressar sozinho a Portugal, de forma deveras destemida.

- Deixai-no! - subitamente o mau humor regressou. A Monforte aproximou-se do velho tio e desmontou para o abraçar - Tio! Estávamos todos com saudades suas! Como correu a viajem? Teve problemas pelo caminho?! Se alguém lhe fez mal diga-me! Não sairá impune!! - o olhar gentil e paciente do tio acalmou a sua incerteza na voz - Suponho que virá connosco numa caçada - retomou num tom mais brando - É melhor acompanhar-nos numa montada mais apropriada - a rainha acariciou a crina do burrico de Tocha - Perseguir cervos ou javalis num burro não me parece prudente - virou-se para um dos pajens - Tratai disso, quero um cavalo em condições para o meu tio, de preferência manso e permissivo.

A Monforte voltou a subir ao seu cavalo e enquanto tratavam da montada de Tocha voltou a encarar Leonna numa expressão algo ressentida pelas suas palavras duras.

- Tenha cuidado, não vá ser surpreendida por alguma besta - dirigindo-se ao líder da guarda - Sigamos, se aparecer mais alguém levem-nos para o local acordado para o início da caçada.

Ana esporeou o cavalo, seguindo logo atrás de dois guardas reais. Com a capa de lã a esvoaçar ao vento a sua figura pouco apelativa não parecia chamar os olhares dos populares na sua direcção, em vez disso parecia ser Eudóxio quem de facto encarnava a figura de rei ou príncipe. Aquilo fê-la sentir-se bem, não queria chamar as atenções para si... não depois de tudo o que se passara nos últimos dias. Apesar de se sentir mentalmente melhor, Ana notara que os seus humores ainda estavam de alguma forma descontrolados, a ira e alegria pareciam caminhar lado a lado no seu interior.
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Med pa varvin-me kreiz ar Brezel, interit me e douar santel | Mas se morrer em combate, que me enterrem numa terra bendita
Leonna
Leonna, que agora recuperara o fôlego e ainda cabisbaixa diante do olhar da sua mãe, olhou como canto dos olhos, para sei tio Tocha a subir no burrico, conteve-se para não rir, ao perceber que a batina, dificultava a subida. A rainha descera do cavalo para cumprimentar o padre, Leonna apenas ergueu a cabeça para ver Eudóxio, garboso e arrancando suspiros de umas moçoilas que estava observando-o.
Permaneceu distraída por um tempo, até ouvir a voz de sua mãe.

- Tenha cuidado, não vá ser surpreendida por alguma besta - dirigindo-se ao líder da guarda - Sigamos, se aparecer mais alguém levem-nos para o local acordado para o início da caçada.

- Sim mamãe, ficarei atenta - olhou para um dos guardas e lhe chamou - por favor, me arranje um arco e flechas, verei se as lições que tive nas florestas de Chaves me servem de algo. O guarda providenciara o que lhe foi pedido.

Começaram então a marcha rumo ao local indicado, Leonna, feliz por estar ali com a família e fazendo o máximo para relembrar as lições de bons modos que teve da governanta do castelo, quando ali esteve pela primeira vez. Se aproximou de Eudoxio e sussurrou, sempre observando para ver se incomodaria as reflexões que a rainhaparecia estar mergulhada, não queria cometer mais uma garfe, que seria atrapalhar as conjecturas da soberana.

- Primo, acaso sabe onde iremos caçar?


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*Quando uma leoa ruge, o leão abaixa a cabeça em reverência"
Eudoxio
Todos os elogios, olhares de algumas moças e a sua própria noção de que realmente deveria estar naquele dia algo galante, faziam com que Eudóxio avançasse, altivo, como um pavão, tal era a vaidade em que estava embebido. Já nem sequer se preocupava com o falcão que transportava, dava-lhe alguma elegância e classe extra. Ficara, aliás, provado que era ali a pessoa a quem melhor ficava carregar a ave...

- Primo, acaso sabe onde iremos caçar?

Perdido com seus desvaires de vaidade, o Faro de Monforte não dera pela aproximação de Leonna que o questionava em voz baixa, muito provavelmente receando mais alguma chamada de atenção da rainha. Eudóxio voltou-se e, sorrindo, fitou-a. A jovem e bela rapariga observava nervosa e discretamente a matriarca Monforte que aparentava estar perdida em pensamentos, enquanto aguardava pela sua resposta.

- Sei sim, prima, será a mata de Monsanto o afortunado lugar de nossa caçada.
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Ana.cat



[Bosque de Monsanto]


Após largos minutos a galope por entre ruas e ruelas sujas e mal-cheirosas da capital a larga escolta avistou finalmente uma das portadas da antiga cerca fernandina. Fora daquela o burgo estendia-se por algumas léguas em amontoados de casebres de madeira e colmo. Ana Catarina torceu o nariz àquela confusão arquitectónica. Não era a pobreza daquelas gentes constituídas maioritariamente por agricultores que a punham numa situação desconfortável, era o ideal utópico de vida melhor que os trouxe às muralhas de Lisboa vindos da ainda mais paupérrima província. A Monforte sempre preferira a vida nos pequenos centros urbanos, Alcácer ou Ourém, eram bons sítios para se viver. Seguros e tranquilos apesar de consideravelmente mais pobres e com mercados mais limitados. Mas era o suficiente para se viver bem, claro, desde que se tivesse a sorte de nascer numa família fidalga, de outra forma viveria-se uma vida tão ou mais miserável que aquelas gentes de Lisboa ou d'outra grande cidade qualquer.
A rainha afastou aqueles pensamentos da cabeça e voltou a sua atenção para o caminho, já se avistavam os arvoredos de Monsanto imponentes e imaculados. Ali era obviamente proibida a caça por parte dos camponenses, isso era uma ajuda à conservação da vida selvagem daqueles bosques repletos de caça grossa e não só. No entanto o Monsanto não era só percorrido pelas hordas caçadoras reais, era sim um destino comum de passatempos para a nobreza da corte real.
Assim que a comitiva começou a pisar o bosque mais profundo Ana deu as primeiras indicações.


- Paremos aqui. Vós... - disse, indicando para os batedores munidos de cornos de caça - Dispersai-vos e procurai indícios de caça grossa, veados, corsas até javalis se os virdes - olhou para Eudóxio - o nosso caríssimo secretário deseja fazer o gosto à lança - sorriu - Eu cá me ficarei pela caça de pequeno porte, coelhos, perdizes, lebres... o que houver.

A rainha voltou-se novamente para Eudóxio, desta vez arrastando o cavalo atrás.

- Tomai uma lança se é javali que pretendeis para o jantar de hoje, ou o arco se pretendes algo que não vos dê tanta luta - esboçou um meio sorriso trocista - Mas por favor, dai-me essa ave que ela com vossa senhoria quanto muito só furará os olhos às vossas presas. Tenho um melhor uso a dar-lhe.

A rainha esticou o braço para o falcoeiro para que aquele lhe entregasse alguma protecção em couro para segurar o animal no braço.
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Joanokax
Johanna montada no seu garanhão e sempre acompanhada do seu fiel servo Barreto, esperava pacientemente pela comitiva da mãe, tentando apanha uma maçã da árvore cuja sombra protegia a sua pele branca do sol.

Quando um dos seus batedores avistou a comitiva, foi a um galope relativamente rápido, mas o suficiente para manter a sua postura.

Encontrava-se rodeada de muitos fidalgos e cortesãos e não podia de forma alguma comportar-se como uma criança, embora quisesse.

Cumprimentou a mãe e afastou-se para dar lugar a outros nobres da corte.
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Ana.cat
A chegada de Johanna ao grupo com toda a sua comitiva de cortesãos libertinos extravagantes - aos olhos de uma mãe que como tal preza pela decência e fama da filha - colocou, apesar de tudo, um sorriso no rosto da rainha. Há bastante tempo que não via a sua princesa e não lhe passara despercebida a postura distante com que a Johanna se mostrava no dude da sua montada. Uma atitude que poderia parecer fria ou arrogante aos mais incautos mas que Ana Catarina percebeu tratar-se de um esforço da filha para a agradar. A pequena Monforte sabia bem como a mãe se exasperava com o seu comportamento desregrado e falta de tacto para o protocolo.
A rainha puxou as rédeas do seu cavalo e fê-lo dar meia volta na direcção da filha, colocando-se ao lado daquela.


- Apreciei a forma como te juntaste a nós - disse, numa tentativa de iniciar conversa - Revela que já estás suficientemente madura para assumir as tuas responsabilidades... um casamento far-te-ia be... - a expressão de irritação que notou na face de Johanna fê-la parar e mudar de assunto - Bom... - pigarreou - Creio que também já estás pronta para uma caçada... não te quero a usar armas de mão, apodera-te de um arco ou um falcão, deixa a caça de maior porte para quem já é experimentado... e acima de tudo, não saias do grupo - endereçou-lhe um olhar duro que passava claramente uma mensagem: "nada de aventuras!".

Voltando a sua atenção para o mestre falcoeiro a rainha levantou a voz para aquele:

- Vamos lá antes que escureça, as perdizes aguardam-nos! - exclamou enquanto picava o cavalo e assumia a vanguarda dos cavaleiros.

O grupo seguiu-a mais ou menos compacto, o bosque aos poucos foi-os engolindo, os cheiros da natureza revigoravam a Monforte e davam-lhe força e vontade para continuar a galopar. Ela sabia que daquela forma estaria a afugentar a caça, mas isso não era a sua prioridade, ela queria sentir-se livre, livre do mundo, dos lacaios, títulos... queria ser só ela e o seu cavalo. Era uma visão desfasada da realidade, logo atrás dela seguiam quase duas dezenas de cavaleiros e outros tantos cães de caça e homens apeados.
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