Martinho Albernaz, o moço como era chamado por diferenciação familiar de seu tio-avô, o astrólogo ancião, já há mui se adiantara naquelas cousas todas de arrumações e ajustes antes que Aristarco chegasse, porque assim convinha bem proceder.
Ademais já bem aprendera tais adiantamentos de assuntos, desde que passara já há algum tempo em condição de aprendiz.
Precisara duma considerável ajuda, de maneira que uma distinta família sadina de mercadores fizera aquel generoso papel que os mecenas dão com todas aquelas questões, enviando serviçais e suas próprias armações de pavilhão, visto que Aristarco era um trovador apenas, sabeis que tais ofícios dArte dificilmente seriam rentáveis, outras vezes até mais danosos, e as cousas são assim mesmo, cada qual com seu porém.
Ademais, já se haveria de comprazer pela beleza daquela tenda ser notória, tinha consigo Martinho.
Porém, não apenas fora concedido um pavilhão bem ornado mui peculiar ao que os diversos italianos da península itálica usavam, mas também alguma decoração viera à corrente duma simplicidade agradável. Diziam aqueles bons itálicos que mesmo na simplicidade, beleza não poderia ser esquecida, um pavilhão seria como a alma e o caráter de seu possuidor, a refletir suas virtudes como gentileza, bem-estar e amabilidade dum anfitrião, assim como seu próprio bom gosto.
Não seria preciso mais argumentar, realmente, já se havia sim um bom teto a abrigar da intempérie e que propiciasse descanso para o contendor e seu escudeiro, assim como receber alguma visita gentilmente.
Aristarco já guardava consigo em memória e sentimento, a generosidade da família de Morii, além de grande gratidão.
Não havia separações no interior daquel pavilhão, apenas uma típica cama em caixote ao seu fundo, para quando o combatente pudesse repousar antes (e talvez depois) daqueles dias de torneio, além de dois baús com apetrechos e paramentos. Também havia ao canto, um candelabro de chão com motivos a lembrar os antigos romanos, capaz para seis velas, além de duas lanternas sobre cada baú.
Por fim, uma mesa simples e pequena, acompanhada duma cadeira também de estilo antigo, com espaldar e braços até a altura do peito e circulares que envolviam o corpo. Eis aí as marcas bem itálicas daquela família de mestres-mercadores, mui bem definidas e delineadas doutras antigas tradições que também penetravam um tanto duma península à outra, já na Ibérica, de fato.
O jovem Martinho fazia mui gosto de tudo aquilo absorver e mesmo a língua italiana lhe interessava, já que presenciara Aristarco um pouco conversar com mercador qualquer em um dos caminhos.
Resultavam caretas ao se lembrar daquelas línguas germanas, tão bárbaras que lhe ofendiam os ouvidos, que também mais costumeiramente (e infelizmente) ouvia do próprio Aristarco com aquelas outras gentes de Brugge, Leuven, Antwerpen e outro montão de localidades de nomes esquisitos.
E por falar inda naquela língua latina, Martinho tinha seus ousados planos, para viajar um dia até a Urbs Aeterna ou mesmo outra república italiana, talvez a mais enriquecer-se em mui outras Artes.
Quem sabe alguma carta de recomendação da preclara família Morii para a república itálica de origem?
Quem sabe, quem sabe... Sonhar é bom e não paga imposto, como se por aí diz, inda mais nestes dias esquisitos em que os tostões se escapam pelas contas e cousas de governança, pelo meu bom Sado, diria Aristarco.
Os ajudantes enviados pela família dormiriam na carroça, não mui distante dali, e Martinho já os fizera ajudar naquelas arrumações assim como cuidados da limpeza e segurança contra ladinos que porventura se aventurassem naquel campo bem guardado. O que seria um feito digno de nota, ao menos em ousadia, se é possível assim colocar.
Já sabia que teria de dormir à entrada, porque os ajudantes seriam dispensados na hora de repouso, mas se arranjaria bem, não lhe faltava prática (nem era ingênuo com relação à guarida dos tais possíveis ladinos; eventos assim era também chamariz deste quilate de gente).
Afinal, aprendizes não eram tão diferentes de escudeiros encostados às entradas, mui vezes ao chão; ao menos para velar descanso de mestres ou cavaleiros...
Enquanto os ajudantes vigiavam a tenda ao dia, o aprendiz, aliás, nesse momento escudeiro, já lá ia acertando algum trato com ferreiro na precisança, garantir melhores preços doutras necessidades, até finalmente ele mesmo se por a correr para adquirir comida e outras provisões, inclusive unguentos simples para ferimentos; evidentemente tudo patrocinado pela família, vejais bem, aqueles mestres-mercadores resguardavam seguridade e garantia em tudo que se propunham.
Martinho não entendia mui bem a razão da família de Morii em relação ao trovador, exceto que só uma amizade poderia assim proceder, porque bem sabeis, amizades que moram ao fundo do coração podem suplantar quaisquer aspectos da intelecção. Se devem suplantar ou não, é outra estória.
Gostava dassim pensar porque confrontava Aristarco acerca daquelas duas vertentes da natureza humana razão e sentimento arrumando respostas e provocações ao pensador.
Mas sua confrontação provocativa era meramente mental... Naquel recôndito mais escondido de si mesmo; só fazia pedidos de elucidação ao mestre, apesar do diálogo ser naturalmente repleto de perspectivas contraditórias.
A parte da provocação guardava consigo, às vezes a morder a língua para não expô-la durante o debate.
E com as mãos a sustentar um cesto de peras e maças, castanhas e ervas que exalavam odor agradável, regressava à tenda, armada ao fundo do grande campo, discreta posição e bem distante do burburinho.
Assoviava baixinho, melodia qualquer.
Todavia se irritou ao notar que ninguém vigiava o lugar, onde estariam aqueles ajudantes...
Quando entrou, quase tomou susto ao ver Aristarco sentado por sobre um dos baús, com o tronco vergado à superfície do mesmo, a rabiscar com sua pena um pergaminho (amassado) e com mão escura já cheia de tinta; o alforje ainda estava dependurado ao corpo com a aba aberta.
Logo, Martinho observava o mestre-trovador arrebatado por alguma outra ideia que nem lhe perdoara o cansaço da chegada impelindo-o a empunhar a pena; sequer aquele havia notado o aprendiz à entrada, tão concentrado que estava ao que escrevia.