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Casa nș 12 - Casa da Cerejeira

Antonieta


A ruiva sorriu para Madalena:

- Ah! Já sei! Já fui para lá passear algumas bezes. Sítio bonito aquele, com as bistas da cidade.

Antonieta começou a sentir-se mais à vontade com a presença da senhora e olhou-a nos olhos:

- Quando num temos nada, são as bistas que nos restam, num é assim Madalena? Às bezes, esta bida cansa. Sempre a trabalhar, a esfolar o corpo e, no fim, num se bê nada. - a rapariga suspirou - Mas ainda um dia destes hei-de ir passear para essas bandas. Bê-se o Douro lá abaixo e os telhadinhos bermelhos todos.

E a rapariga, tirando a enxada das mãos de Madalena, fez-lhe sinal para que a seguisse.

- Benha, faço um cházinho. A patroa num está, mas ela também num se importará. É tão boazinha comigo.

As duas encaminharam-se para casa. Antonieta estendeu um banco de madeira a Madalena. De seguida, atiçou o lume e colocou no tripé um tacho com água para ferver. Tirou de um frasco moído algumas ervas secas e deitou-as no fundo do recipiente. Enquanto esperava que a água chegasse perto da fervura, colocou na mesa duas canecas com um pano alvo em cima. Durante os preparativos, mantiveram-se as duas em silêncio, que a ruiva quebrou logo a seguir:

- Pronto, agora é só coar e já está. Açúcar?
Maria_madalena


Madalena ouvia com atenção as palavras da ruiva. Finalmente conseguira que ela ficasse mais à vontade. Podia sentir que os muros estavam lentamente a ser transpostos.

Quase sem se aperceber, a meretriz ia criando uma certa empatia com a rapariga, podia ver nos seus olhos a ambição que a definia, as palavras e os gestos eram simples, tais como os seus. Mais ainda, Antonieta apreciava a vista da cidade a partir da colina. Não havia nada mais precioso para Madalena do que aquele silêncio restaurador e a vida quotidiana dos portuenses.

Perdida em divagações, a meretriz mal se apercebeu que Antonieta lhe retirara a enxada. Num acto quase inconsciente seguiu-a para dentro da pequena e acolhedora habitação. Não se delongou com os escrutínios e focou-se na ruiva que agora lhe preparava um chá.

Pronto, agora é só coar e já está. Açúcar? - perguntou-lhe Antonieta.

Sim, sim. Geralmente só coloco mel, sai mais em conta. - comentou Madalena.

Antonieta entregou-lhe a sua xícara de chá, e a meretriz tomou-a entre as mãos aproveitando o calor para as aquecer. A ruiva sentara-se a seu lado e bebericava o chá ruidosamente.

A vida num está fácil. Já viu como tem chovido? - bebeu um pequeno golo do chá e continuou - Isto num há-de ser bom... estas chuvas sem descanso vão destruir tudo. Mas os fidalgotes num vão passar fome não. Nós é que vamos. Olhe pô que lhe digo... - fixou brevemente o olhar no chá tentando acalmar-se, não pretendera ser tão directa, mas a conversa para lá rumara - A Antonieta acaso num estaria interessada numa fonte de rendimento extra?

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Lorena_davila


Lorena chegou a casa cansada, mas feliz. Entardecia no Porto e o céu ganhou uns tons rosados e cinzentos. Viu Antonieta em casa com uma amiga, mas não ligou. Ainda olhou pela janela, mas como não a conheceu, depressa virou o olhar. Decerto alguém que conhecera no passado.

Sentou-se num montinho de pedras no jardim e reparou na árvore que se erguia bem no meio do espaço. Outrora raquítica, despontava agora em flor. Ainda eram só botões, é certo, mas despontaria sem tardar muito. Estava curiosa. Não deixara Antonieta arrancá-la. Talvez viesse a valer a pena.

Fechou os olhos por momentos. A vida corria-lhe bem demais. Teve até medo que fosse um sonho. Mas não, não tinha sido.

Lorena deixou-se ficar no jardim por mais algum tempo. Não tinha pressa. A vida sorria-lhe.

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Antonieta


Antonieta ouvira Madalena com atenção e assentira com a cabeça à medida que ela falava. Ah, como aquela senhorita tinha razão! Mas suspirou:

- Trabalho de sol a sol nos campos. Outro trabalho num arranjo. Num sei fazer mais nada. A minha mãe, que Jah a tenha em descanso, ainda tentou ensinar-me a costurar, mas num daba para aquilo. Muito ponto, muita picadela no dedo. - encolhe os ombros - Não sei que mais possa fazer.
Maria_madalena


Madalena olha-a compadecida, apesar da vida ter sido dura com Antonieta a rapariga ainda conservava um pingo de ingenuidade e pureza. Acometida por uma pequeno remorso, a meretriz ainda pondera desviar o assunto do seu propósito. Contudo, após um breve momento de silêncio e de luta interna continua:

Costumo trabalhar de noite sabes? Não é um trabalho pesado. - Madalena mostra-lhe as mãos de unhas limpas e pele delicada - O dinheiro vai compensando... não preciso de trabalhar de sol a sol. - solta um pequeno suspiro e conclui - Gostarias de vir comigo? Uma noite? Precisamos de raparigas jovens.

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Antonieta


Antonieta ficou calada e pensativa. Então era isso, Madalena trabalhava de noite. Hum, a sua consciência dizia-lhe, quase lhe gritava aos ouvidos, que não devia fazer aquilo. A mãe sempre se referira àquelas senhoras da pior maneira possível, pelo menos, da pior maneira que é permitida a uma dama. Mas a mãe deixara-a, Jah levara-lha e ela pedinchava comida e uma cama. O que poderia ser pior?
Suspirou e olhou as mãos de Madalena. Depois voltou o olhar para as suas. Estavam gretadas e ásperas, com lixo debaixo das unhas.
Depois de uma intensa luta interior, Antonieta perguntou a medo:

- Posso ir experimentar? Assim, só uma noite...
Lorena_davila


Anoitecia já quando Lorena decidiu entrar em casa. Cumprimentou a senhorita que acompanhava Antonieta e lhe foi apresentada como Madalena e pareceu-lhe estar a interromper uma conversa importante. Ficaram as duas caladas na sua presença, sem saber muito bem o que dizer.

Lorena não se demorou, gostava que Antonieta convivesse com as suas amigas. Era tão fechada... Suspirou e encaminhou-se para o baú onde guardava as suas roupas, mas ficou desolada. Era tudo trapos velhos, estragados. Não, não podia ir assim.

- Antonieta, vou ter de sair novamente. Volto mais logo, sim?

E acenando às duas raparigas, saiu de casa e encaminhou-se para Casa da Hera.

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Maria_madalena


Madalena acabara de abrir a boca para falar quando a menina Lorena as interrompe. Um pouco atrapalhada e incomodada, a meretriz cumprimenta-a com a devida cortesia, mas não dispende mais palavras do que as necessárias. Lorena parece-lhe demasiado íntegra, não iria gostar de si. Assim que Lorena fecha a porta, Madalena suspira profundamente, aliviada com a sua ausência. Antonieta permanecia sentada à sua frente de olhos ávidos e curiosos e a meretriz não se delonga:

Sim, sim, claro. - confirmou-lhe com repetitivos acenos de cabeça - É só uma opção, se não gostares, não precisas de voltar. - assegurou-lhe numa voz meiga.

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Antonieta


Antonieta estava com medo. Lembrou-se da fatídica noite, a pior da sua vida. "Não pode piorar" pensou. Olhou novamente para o ar saudável e cuidado de Madalena e decidiu-se num tom peremptório.

- Bamos lá atão. Se gostar, fico. Se não gostar, bolto.

Madalena sorriu-lhe e acenou-lhe em jeito de aprovação.

- Anda, então. Poderás começar já hoje.

Com o pouco que sabia escrever e numa caligrafia torta e bicuda, Antonieta rabiscou num papel umas linhas, para que Lorena não ficasse preocupada com a sua ausência, e saiu logo atrás de Madalena, rumo à casa da Babilónia.
Lorena_davila


Lorena chegou a casa feliz com o seu vestido novo. Era bom ter amigos. Amigos de verdade, de todas as horas, em todas as circunstâncias, e Lorena tinha.

Leu à pressa o papel de Antonieta. Ainda olhou uma segunda vez. Mal se entendia a mensagem por entre os erros ortográficos, mas saíra para passear. Tudo bem. Também precisava. Era estranho que saísse tão tarde, mas estava com a amiga, certamente.

Deitou-se. Abriu o seu livro de poesia e releu alguns poemas que já sabia de cor e salteado. Que bom que era se tivesse mais para ler. Decerto, as gentes do Porto saberiam outros que ela não conhecia e ela teria alguns para lhes recitar. Adormeceu com uma ideia a formar-se na sua mente...

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Lorena_davila


Lorena acordou bem-disposta naquela manhã. As portadas da janela não fechavam bem e os primeiros raios de sol primaveris teimavam em escapar-se por entre as frestas.
A rapariga levantou-se de um salto e o livro de poesia que estivera a ler ao serão caiu-lhe do colo. Apanhou-o e sorriu. Sabia exactamente o que ia fazer.
Abriu então a janela de par em par e deixou o sol entrar à sua vontade no quarto.
Respirou fundo, de olhos semicerrados, e olhou então o jardim. O espanto tomou conta de si. Ficou boquiaberta, pasmada. A arvorezinha raquítica que estivera prestes a cortar desaparecera e dera lugar a uma frondosa árvore de flores brancas, alvinhas de neve, tão lindas. Por longos minutos, não se cansou de a contemplar, maravilhada.



Lorena tivera a ideia, no dia anterior, de criar o Clube de Poesia do Porto. Só precisava do local e já descobrira. Aparecera-lhe diante dos seus olhos. Seria debaixo da sua cerejeira. Ah, que belo dia! Iria já tratar de tudo!

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Cientista


Cientista farto de ouvir Lorena nas tavernas a pedinchar por um gato, e depois de perceber que era uma bola de pelo o que ela verdadeiramente desejava, passa uma noite pela casa da cerejeira e deixa num caixote esburacado à sua porta.



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Lorena_davila


Lorena ia já deitar-se. Antonieta saíra novamente ao anoitecer sem explicações. A rapariga começava a preocupar-se, mas a empregada andava cada vez mais sonolenta e fechada. Decidiu que no dia seguinte falaria com ela.
Apagou o lume, deixando apenas algumas brasas acesas para aquecer o compartimento. Estava a esticar a manta sobre a esteira, quando ouviu um restolhar à porta. Era um som indefinido e depois, passos. Correu à porta e abriu-a a tempo de ver o portão do jardim fechar-se. Com a noite a cair, a escuridão não deixou descortinar o visitante.
Aos seus pés, estava uma caixa cheia de buracos e um miado fino saiu de dentro. Lorena apressou-se a rasgar o cartão e encontrou lá dentro um gatinho preto.

Era pequeno ainda, com uns olhinhos curiosos que a perscrutavam inquietos. Instintivamente, pegou-lhe e encostou-o ao peito. O bichano lançou um pequeno miado.

Levou-o para dentro de casa, arranjou-lhe uma caminha confortável junto ao lume. Não sabia o que lhe dar de comer. Encontrou um resto de leite fresco que comprara no mercado e encheu um pires. O gatinho bebeu avidamente o leite e foi-se deitar na sua nova cama, lambendo os bigodes. Depois miou de novo, dobrou-se sobre ele e começou a lavar o pêlo.

Lorena observava o animalzinho encantada. Tentava lembrar-se de quem lhe poderia ter trazido o gato. Falara algumas vezes na taverna do quanto seria feliz se tivesse um, mas nunca pensou que os seus amigos lhe fossem satisfazer o capricho. Fez-lhe uma festinha atrás das orelhas e ele ronronou consolado. Depois, enroscou-se e adormeceu.

Lorena ainda ficou algum tempo acordada, pensando no nome que daria ao bichano, mas como nenhum lhe pareceu adequado, decidiu protelar o assunto até ao dia seguinte.

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Antonieta


Antonieta entrou trôpega de sono em casa e assustou-se com o gatinho. Gritou. Era de madrugada. Lorena acordou estremunhada, mas depressa se apercebeu da situação e pegou no gato, que assustado, fugira para junto de si.

Antonieta não queria dar explicações, só lhe apetecia dormir, dormir, não pensar. Mas o semblante de Lorena, não lhe deixava dúvidas. E agora? Contar? Não contar? Mas também, se não contasse, que desculpa arranjaria para chegar a casa de madrugada desde há três noites.

Não gostava de gatos pretos. Eram assombração, mau agoiro. Raio da rapariga que arranjara um.
Lorena_davila


Lorena acordara com Antonieta. A empregada vinha com os olhos papudos de sono, um vestido justo que não lhe conhecia, com um decote que a fazia corar. Uma alça estava meia descosida e era tão curto, que Lorena lhe via os joelhos. A conversa não podia esperar. Era de madrugada, o sol entrava ainda a medo pelas frinchas do telhado e frestas das portadas. Não eram horas de se entrar em casa. Quando muito, de sair para ir trabalhar.
A empregada assustara-se com o gato e olhava com desconfiança para o animalzinho que se aninhava no seu colo, com algum medo até.
Lorena estendeu-lho:

- É um gatinho, não te faz mal. Faz-lhe uma festinha.

Antonieta recusou-se. Abanou a cabeça e deu um passo para trás. Lorena não se conteve mais:

- Então, Antonieta, onde estiveste?

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