[RP] Um Desastre de Natal

Beatrix sorriu, e antes de comer e beber fez uma silenciosa prece, pois sabia que nem todos ali partilhavam da sua fé, e preferiu ser discreta. Então, assim como os demais, ela começou a comer e a beber. Aproveitando todas aquelas dadivas que lhe eram oferecidas, a boa comida, a boa bebida, e acima de tudo a presença de familiares e entes queridos.

Ela serviu um generoso pedaço de peito de peru para Eduarda.

- Aqui está o peru. Creio que a Madalena deve fazer as honras pois estamos na casa dela. O senhor Arnold poderia abrir o vinho.

Beatrix propõe para que possam servir a ceia.

Beatrix tentou explicar, ao menos o que estava dentro do seu conhecimento sobre o que se passara naquela sala.

- Demétrio é um desastre ambulante. Ele é alto e corpulento e ao mover-se demais derrubou o bule de chá que eu havia feito. Como o chá estava quente não deve ter sido uma experiência agradável. Estávamos apenas jogando carta, esperando que você retornasse, Nicole. Felizmente parece que está tudo bem com o senhor Arnold.

Enquanto ela falava, o cheiro bom do peru que estava assando no forno a lenha tomava conta da casa.

- Logo, logo o peru será servido.

Ela disse sorridente.

Beatrix alheia ao que acontecia entre Maria e Demétrio, tomou aquele acidente como mais um dos efeitos dos desastres do guardião. Viu o homem correr porta a fora, mas não fez nada para impedi-lo.

- Por Jah! Mas que parvoice é essa?

Depois de dizer essas palavras Beatrix moveu suas atenções para Nicole, que retornara agora acompanhada de seu primo Arnold. Ao vê-lo, ela foi até ele para cumprimentá-lo com um abraço.

- Olá, primo.

Ele temeu que Madalena rejeitasse o toque, mas ao perceber que ela gostara, ele prosseguiu em sua intenções, até a interrupção de Beatrix.

Demétrio mal conseguia olhar para a Beatrix tamanho o receio de que ela notasse o que se passava ali. A mão dele escorregou para longe do local desejado, esperando que a partida recomeçasse e que ela não percebesse nada.

Felizmente, Madalena ao ser questionada, teve mais presença de espirito que ele teria.

Depois que Maria trocou a carta, e a partida foi retomada, ele aguardou o momento propício de retornar sua mão para o local desejado. Demétrio estava ofegante, e tomou mais um gole de chá devagar, tentando recuperar a calma. Aquela casa cercada de belas mulheres estava mexendo com ele.

- Maria, essa carta não faz ponto.

Beatrix disse e sorriu ao notar a combinação que Maria jogara sobre a mesa. A tecelã não atinara ainda sobre o que se passara ali sob a mesa, e tomou o erro de Maria como uma distração ou confusão sobre as regras.

Demétrio não se opôs a proposta de Beatrix e sentou-se ao lado de Madalena. Na primeira partida ele procurava orientar discretamente a parceira, indicando com o olhar as cartas que ela deveria jogar para formar o maior número de pontos. Às vezes ele se distraia, ora pelo perfume de Beatrix, ora pelo generoso decote de Madalena. Mas logo vinham a sua mente as ameaças de Nicole. Aquela louca era bem capaz de pôr aquele plano terrível em prática. Esse pensamento doloroso afastava as ideias libidinosas que voltavam a sua mente durante aquela partida. Era a luta entre dois instintos básicos, e era difícil saber qual era mais forte naquele momento, até que Demétrio sentiu às discretas investidas de Maria.

Ele quase derrubou a xícara quando sentiu aquele toque em sua perna, subindo por sua coxa e depois quase alcançando a região que Nicole ameaçara. Demétrio fez um esforço para controlar-se, mas seu rosto estava vermelho, e ele começava a suar no frio do inverno. Tomou um gole de chá, e por pouco não se engasgou de novo. Era difícil manter a calma naquela situação. Aquele contacto o atiçara, e aos poucos a mensagem de Nicole era esquecida. Recuperando o controle, ele mantinha a atenção no jogo, mas a sua mão discretamente começou a apalpar e apertar a coxa de Maria por debaixo da mesa. O fato de Demétrio ter braços compridos e mãos grandes ajudava-o a alcançar a área pretendida sem despertar a desconfiança das moças a sua frente. E logo Maria sentiria o toque atrevido de Demétrio por cima de sua saia em uma área tão sensível e desejada. Nesse jogo era evidente qual instinto era o vencedor.

Beatrix trouxe um bule cheio de chá, e serviu as xícaras de todos.

- Creio que Demétrio será meu par, e Eduarda jogaria com Maria. Talvez fosse bom trocarmos de pares, pois você sabe jogar e elas ainda vão aprender.

Beatrix propôs e Demétrio aceitou de bom grado.

Eles iniciaram a partida. O chá era bom, e trouxe um pouco de calor àquela noite. Mas seu sabor não se comparava ao vinho. Eduarda parecia não gostar e ao beber fez uma careta, mas aos poucos pareceu se acostumar com o gosto e logo repetiu uma segunda xícara. O sabor era indefinível, havia algo de tília, ao menos em seu aroma adocicado. Mesmo assim, dava gosto bebê-lo e a vontade irresistível de provar mais.
A partida prosseguia.

Beatrix pensou em acudir Demétrio, quando percebeu que Maria já se dispusera a fazer isso de forma mais efetiva.

- Não quero que minha torta ganhe fama de assassina. Então trate de se recuperar.

Demétrio ouve aquela história tão triste e se sente mal, por ter sido tão duro com Nicole.

Ele faz um esforço enorme para não chorar, pensando no pobre homem e na criança, vendo pessoas tão queridas serem executadas.

Ele havia apreciado a torta feita por Beatrix, e a estava devorando com satisfação. Mas aquilo, deixou-o com um nó na garganta.

Ele foi ficando roxo, pois a torta entalou, em meio a gulodice e a tristeza,e agora ele tossia sem parar, tentando não sufocar, engasgado pela torta.

- COF!COF!COF!COF!COF!COF!COF!

- E o que aconteceu ao senhor Arnold para deixa-lo tão taciturno?

Beatrix perguntou, tentando evitar chamá-lo de desagradável ou antipático. Comeu uma fatia de torta e esperou que Nicole contasse um pouco da história daquele homem.

- É de pera. Coloquei um pouquinho de canela, só para dar um toque especial, pois essa especiaria é muito cara, mas vocês merecem.

Ela disse com um sorriso.

- Pode comer, Nicole, não está envenenada.

- Meu primo? Disso eu não sabia.

Beatrix comentou, com surpresa sincera, enquanto servia-se de um pedaço da torta de pera com amêndoas. Apesar da pressa com que fora feita, estava saborosa. Quando partiu a torta um cheiro bom de doce tomou aquele cômodo, o cheiro das peras carameladas com um toque de canela.

Demétrio concorda sobre a torta, mas a verdade é que a conversa com Nicole tirou-lhe a fome. Ele sente-se indesejado, mas como não pode sair dali, prefere o silêncio em meio a companhia daquelas damas que o deixam perturbado.

Ele que pensou que seria bom estar cercado de tão belas mulheres, agora se arrepende da insistência em estar ali.

Os últimas palavras de Nicole deixaram Demétrio tenso. Se ela soubesse que ele já esteve com Madalena na Casa da Babilônia ela certamente ia querer vingar-se dele. Ele não tinha medo de Nicole, mas ela não o enfrentaria de forma direta como ele estava acostumado, certamente ela prepararia uma armadilha e quando ele estivesse sozinho e adormecido poderia acordar cercado de mercenários que fariam coisas horríveis com ele. Disso ele tinha medo.

Ele achava que não tinha culpa se ao ver as belas donzelas ficava desejoso. Ele jamais faria algo que elas não quisessem, mas era feito de carne, era de fato um pecador.

A chegada de Beatrix quebrou aquele clima tenso, e ele sabia que ao menos diante da prima, Nicole não cumpriria aquelas ameaças. Mas as palavras duras de Beatrix talvez indicassem que ele não contava mais com a confiança e o favor dela.

Ele devia ser menos impulsivo, mas era difícil com donzelas tão belas e agora ainda por cima perfumadas.

Demétrio pensou enquanto sentiu o cheiro de rosas e flor de laranjeira.

Demétrio olhou para Nicole com uma expressão que era mais assustada que raivosa. Diante daquele comentário ele agora tinha a certeza que Nicole era mesmo um demônio ou pelo menos uma bruxa, que lia seus pensamentos e agora usava os pecados dele para atormentá-lo.

- Eu, eu não fiz nada. Não sei do que está falando...

Ele disse e corou de vergonha por sua mentira. Afinal, já havia tocado em Madalena, e se a ruiva o permitisse o teria feito também.

- Deixe-me em paz, nem todos são viciosos como tu.

- Imagine, eu ofereço com gosto e quero que aceite. Vai ficar toda cheirosa.

Beatrix disse e sorriu enquanto passava um pouco de óleo de amêndoas doces para desembaraçar os cabelos.

Beatrix fez o que Madalena disse, apesar de ter vontade de jogar um balde de água fria em Demétrio, por ele ter se comprometido a ajuda-la e agora estar ali sem nada fazer por conta do seu "ferimento de guerra". Mas o desejo de tomar um bom banho foi maior e ela com disposição e esforço levou os baldes para misturar água para um delicioso banho morno.

Demétrio ainda fez menção de levantar-se e ajudar Madalena com o balde, mas a dor ainda o incomodava e ele voltou a sentar-se.

Beatrix ainda aproveitou e fez troça dele.

- Não pode estar doendo tanto, já vi homens que a Nicole castrou terem ainda disposição para levantarem uma espada e lutarem. Isso não pode ser pior que um belo corte.

Madalena havia de perceber a agressividade de Beatrix com Demétrio, que se aproximava agora com a mesma "gentileza" devotada a ele por Nicole.

Depois de levar os baldes com a ajuda de Madalena, Beatrix foi até seu alforge de viagem, pegou um vestido limpo e foi tomar o seu banho.

Ela agradeceu a prima, fechou a porta e despiu-se, entrando na banheira. Ficou surpresa ao ver que havia pedaços de ervas e tempero até nos seus cabelos e por isso chamou Madalena para ajuda-la a lava-lo com um pedaço de sabão de óleo de amêndoas e laranjeira, um presente que o irmão William teria lhe enviado junto com um vidro de água de rosas, segundo ele, adquiridos em Veneza. O pedaço de sabão tinha um curioso tom amarelado.

- Madalena, pode me dar uma ajudinha?

- Pena que não posso dizer o mesmo do atacante dele. Talvez mais algumas bicadas dessem juízo ao Demétrio.

Ela disse e sorriu.

- Madalena, preciso urgente de um banho, pois não passei incólume por esse batalha. Por Jah, como estou cansada.

Demétrio apenas ouvia em silêncio o que Madalena lhe dizia. A maneira com que ela o travava e as coisas que dizia o deixavam um pouco perturbado, um tipo de perturbação que ele não poderia ter no momento.

Aquilo seria uma tortura, ficar ali talvez por dias, e impossibilitado. E se ele nunca mais pudesse fazer nada com aquela região?

Esse pensamento era desesperador.

- Imagine, não lhe darei esse trabalho, sararei logo ou então vou a pé, em uma carroça, de qualquer jeito.

Ao ouvir as palavras de Madalena Demétrio fica mais vermelho que um tomate, receoso que Maria vá espalhar sobre o encontro deles na Casa da Babilônia.

Ele abre a calça discretamente e sobre a roupa de baixo coloca a neve. O toque frio lhe dá uma sensação perturbadora e ele quer sair pulando dali, tentando acomodar a neve da forma menos dolorosa.

Aos poucos a sensação vai diminuindo assim como a dor, que vai cedendo e dando alivio enquanto a neve derrete.

- Obrigado, Maria. Ao menos alguém que se dispôs a cuidar de mim. Mas nessa situação eu teria vergonha até da minha mãe.

Beatrix deixou que Madalena tratasse de Demétrio, pois ela precisava tratar de David Jr, o peru. Ele precisava de boas doses de cerveja ou a carne daquele guerreiro implacável ficaria dura e o tempero não seria bem absorvido. Ela esperava contar com a ajuda de Demétrio naquela tarefa, mas ele agora ficaria um bom tempo fora de combate.

Seria um trabalho exaustivo, e precisava começar. ela tomou um balde limpo e o encheu de cerveja de onde tiraria as canecas para dar ao peru. Desamarrou-lhe o bico e ofereceu o precioso líquido. Talvez cerveja demorasse demais. Ela pensou e tomou duas canecas, antes de ir buscar o famoso whisky de Nicole para embebedar o peru.

A expressão de Demétrio não poderia estar mais desconsolada, ele não sabia se enfiava a cara no chão de vergonha ou se bancava o forte para não ficar mais humilhado ainda na presença das moças que já riam da situação dele.

Ao menos Beatrix não dissera nada sobre o beijo que ele tentara lhe dar.

Engolindo a vergonha e a dor ele aceitou a proposta de Madalena, pois temia que após a bicada do ser ignóbil seu membro viril pudesse inchar e depois cair como uma fruta podre. Essa ideia deu-lhe forças para ficar de pé e seguir com Madalena.

Depois de deixar David Jr, o peru, imobilizado e completamente amarrado, Beatrix foi para junto de Nicole, Maria e de Demétrio, que estava caido.

- Sim, meninas, o peru fez mais uma vítima, ele deu uma bicada no... ele bicou entre as pernas de Demétrio, enquanto discutíamos. Chamamos um médico?

Ela disse sem noção do que fazer. Uma coisa era colocar um emplastro de gengibre no nariz de Maria, outra era colocar algo assim naquela região tão delicada.

Ciente de que havia aborrecido de verdade a Beatrix, Demétrio foi atrás dela antes que ela desse mais de dois passos com a caneca na mão, então segurou a ruiva pela cintura virando-a para si. Ele olhou Beatrix nos olhos e corou quando segurou no queixo da moça fazendo-a encará-lo também e inclinou-se para um beijo nos lábios rosados e macios da donzela.

O que ele estava fazendo afinal? Não esquecera a noite com Madalena e agora estava desejando uma noite com a ruiva também? Era assim que ele ansiava em proteger as donzelas?

Antes que Beatrix acertasse Demétrio com a caneca pelo atrevimento, algo aconteceu. O "criminoso" escapara e sacudindo suas penas pelo quintal, tomou carreira e atirou-se furibundo contra Demétrio passando pelas pernas do rapaz alto e forte, e bicando-lhe em uma parte bastante sensível.

O grito de Demétrio foi ouvido por Nicole e por Maria. Parecia que esfolavam alguém ainda vivo.

- AHHHHHHHHHHHHHH!

Demétrio caiu ao chão, se contorcendo de dor, enquanto o peru abrindo as asas, soltava um Glu-glu-glu vitorioso.

Quando viu Beatrix se aproximando com a caneca de cerveja, Demétrio cessou de cortar a lenha e deixou o machado encostado perto de uma cerca e foi até Beatrix, sem notar seus olhares.

- Obrigado, senhorita.

Ele disse e pegou a caneca das mãos da ruiva e tomou um bom gole pois estava com sede.

- Estava com saudades da sua gentileza. Sei que ainda é uma moça doce e amável, apesar da má influência dessa Nicole.

Ele disse logo depois do gole com um sorriso, depois deu uma olhadela rápida em direção a casa e sua expressão se tornou mais séria. Ele continuou falando para Beatrix em voz baixa para só ela ouvir, pois temia que um dos empregados de Nicole o espionasse.

- Ela comentou algo sobre quem era aquele sujeito? Estou preocupado que estejam correndo perigo aqui. Sei que fica chateada quando falo da sua prima, mas sabe por experiência própria que desde que a conheceu só achou-se em confusão. Digo isso para o seu bem. Afaste-se dela enquanto é tempo.

- Embebedar o peru e depois aí sim, matá-lo. E o forno precisa estar bem quente, por isso o Demétrio está lá fora cortando lenha. Assei uma torta para nosso almoço e logo mais será a morte do peru.

Betrix disse ansiosa, como se já saboreasse a carne suculenta do peru assado.

Depois das compras de Natal terminadas, Nicole, Maria Madalena, Eduarda, Demétrio e Beatrix deixaram a feira e retornaram para a casa da colina, onde a preparação da ceia de Natal deveria começar.

Agora já passava das nove da manhã e o sol começava a esquentar um pouco aquele dia frio, mas não o suficiente para derreter a neve que havia caído aquela madrugada.

Demétrio ofereceu-se para limpar a entrada da casa de Madalena com uma pá e um pouco de sal.

Como o dia esquentara e o esforço era grande ele tirou a camisa, e ficou com o torso nu, enquanto fazia o serviço. Ao menos o trabalho ajudava a esquentar um pouco aquela friagem. Assim que terminou, ele se dispôs a cortar lenha para alimentar o forno onde assariam a ceia e em especial o peru.

Beatrix amarrou o bicharoco no quintal enquanto se ocupava de outras tarefas na cozinha, preparando as sobremesas para mais tarde e algo mais simples para o almoço, pois logo todos estariam com fome.

Beatrix continuava caminhando e deu alguns dos pacotes de compras para Demétrio carregar. Assim que ele voltou da barraca onde vou encomendar a cerveja.

- Ele vai perder a cabeça mas ao tempo certo. E com a barriguinha cheia de cerveja, nem vai saber o que lhe aconteceu.

Ela disse com um sorriso para Nicole e Madalena.

- Ai! Que espetáculo estamos a dar.

Beatrix disse e riu pondo as mãos na cintura. Ao ver Demétrio sacando a espada o olhar dela foi de censura e espanto.

- Está achando que o peru é algum perigoso guerreiro encantado? Não vá me estragar o jantar, Demétrio. Guarda essa espada.

Ela disse e continuou a rir. Só faltava Demétrio achar que o peru era algum Casterwill disfarçado.

- Vamos lá David Jr. Vou seguir com ele, antes que essa fera assassina os mate a bicadas.

Ela disse ainda rindo.

Demétrio foi surpreendido pelo pedido de Nicole. Não soube dizer a princípio se ela falava a sério ou se mais uma vez zombava dele. Mas ela certamente não precisava pedir duas vezes que ele protegesse as donzelas, pois aquela era sua missão.

Ele ficou sério e concordou com um aceno de cabeça, enquanto viu Nicole se distanciar.

Assim que ela foi em direção ao estranho, ele percebeu que Beatrix havia notado o sumiço da prima. Ele não podia permitir que mais uma vez ela se arriscasse por Nicole, e a conteve, evitando alarde, segurando-a com firmeza mas sem machucar.

- Deixe-a, isso é coisa particular.

Ele sussurrou em seu ouvido, para que a jovem irmã de Nicole não percebesse o que se passava.

Demétrio ficou mais tranquilo quando notou que Beatrix finalmente ouviu a voz da razão e aceitou um conselho seu. Ele quase suspirou de alivio e esqueceu sua mãe ali presa no braço da ruiva.

Quando ela o puxou para que ele a soltasse, Demétrio ficou vermelho de vergonha e abaixou a vista.

- Sim, eu sei. Até já me agradei de um, mas precisava provar isso primeiro. Adoro vinho quente com especiarias. Prove um pouco também. Creio que vou levar ao menos duas garrafas para alegrar nossa noite, apesar de Nicole ter trazido whiskey. Também compraremos cerveja.

Ela notou o olhar de preocupação de Madalena e emendou em seguida.

- E não se preocupe com a preparação. Eu cuido disso e do abate. Não sou tão boa cozinheira quanto a Laurinda mas já tenho uma certa experiência. Além de costurar no convento eu também cozinhava as vezes, e já abati vários carneiros e pessoas também mas esse último exemplo não vem ao caso.

Beatrix disse e sorriu.

Diante da expressão de Madalena Beatrix disse em tom afável.

- Só fiquei no convento entre os nove e os dezesseis anos. Ou seja, foram praticamente sete anos em companhia das freiras. Não posso dizer que foram tempos ruins, pois elas eram gentis comigo e aprendi muita coisa, também ocupei as ideias planejando o que faria quando saísse. Ano que vem fará dois anos que as deixei. Quanto às mortes não é de surpreender uma vez que sou militar. Treinei para isso, já estive em uma guerra, ainda que não tenha lutado nela de fato. Os que matei foram em sua maioria bandoleiros, que me tomavam por uma donzela indefesa e tiveram o que mereceram. Mas o primeiro foi quando eu ainda estava no convento. Era um homem sórdido que entrou à noite e tentou nos roubar e atacar uma das irmãs. Eu tinha dez anos...

Beatrix calou-se terminou a caneca e entregou-a ao vendedor e passou-lhe algum dinheiro em troca de duas garrafas. O vinho ainda estava morno, mas quando chegassem em casa era só esquentar novamente em um tacho e estaria ótimo. Ela então aproximou-se com Madalena da tenda onde vendiam os perus. Indicou com um dedo um peru belo e rechonchudo.

- Está perfeito, não acham? Até parece o "irmão" do David de tão rechonchudo.

Ela disse e sorriu.

Depois de deixar alguns itens na casa de Madalena, e Eduarda decidir se pretendia acompanhar o grupo, Nicole, Maria, Eduarda e Beatrix seguiram para a feira do povoado para fazerem as compras que faltavam para a preparação da ceia de Natal.

Beatrix preferiu deixar seu cavalo Desheret descansando e foi caminhando com Demétrio. Ele insistiu em ajudar, pois não queria ver as damas carregando compras pesadas. Aos poucos o grupo chegava a feira.

Apesar do frio, estavam todos muito animados. Havia um cheiro bom de incenso queimando em uma das barracas que também vendia velas de vários tamanhos. Um mercador ao lado vendia brinquedos de madeira de vários tipos. Havia soldadinhos e cavalinhos de pau, espadas de madeira e bonecas de madeira com cabelos de linho ou cabelos naturais. Ao lado uma vendedora oferecia alfenins em formato de flores e bichinhos.

Mais adiante uma barraca expunha vários vestidos pendurados, além de tecidos , lã, luvas e gorros. Todas as barracas tinham algum enfeite natalino como sinos, guizos e guirlandas. O vento soprando faz um divertido barulho nos guizos e sino, parecendo uma música divertida.

Um mercador oferecia perus bastante gordos que estavam amarrados pelo pé ou presos em gaiolas.

Também se vendia vários tipos de comida e bebida. Havia uma barraca de frutas frescas e secas, além de muita oferta de vinho e cerveja. Um dos comerciantes oferecia uma degustação dos vinhos antes de comprar e Beatrix parou para experimentar uma caneca de vinho quente com especiarias.

- De fato estou aqui para proteger a donzela Beatrix...

Ele quase quebrou a promessa que fez a Beatrix de não causar problemas, e emendou a frase "das suas perfídias e veneno", mas controlou-se.

- Mas protegerei também as vossas irmãs, caso seja necessário. Estou ciente dos perigos pelos quais passaram e não gostaria de me afastar. Se houver algo que possa fazer aqui e ser útil, me prestarei a fazê-lo sem reclamar.

Demétrio não apreciava a ideia de afastar-se e deixar Beatrix e Madalena à mercê de Nicole. Também temia pela jovem Eduarda, que pelo visto a serpente do mal também pretendia desencaminhar.

Demétrio ouviu as palavras de Madalena e de Beatrix, ficando ainda mais corado por conta das referências aos seus atributos físicos.

Ele de fato era forte, e teria prazer em ajudar as damas com a suas força. Era para isso que ele estava ali, e para cuidar e proteger, sempre.

Ele sorriu com satisfação, e disse, ainda corando e com seu ar inocente.


- Estarei a mercê das senhoritas para tudo o que precisarem.

Após Beatrix abraçar Madalena, ela apenas observou a forma como Demétrio cumprimentou a prima. Apesar do olhar severo na direção de Demétrio, ela ficou satisfeita dele ter mostrado um lado mais gentil e civilizado.

Ainda que houvesse momentos em que ela se irritava com Demétrio, não podia negar que ele agia como um cavalheiro, e mesmo não nutrindo simpatias por Nicole, ele jamais destrataria uma dama. Ao menos isso era um alívio, e Beatrix imaginava que isso o manteria longe de confusões naquele Natal.

Ela percebeu que Demétrio corara, mas aquilo não a surpreendeu, pois ele costumava fazer isso diante das mulheres, e era em geral tímido, mesmo com ela, a quem ele já conhecia há algum tempo.

Beatrix sorriu mais tranquila, pensando que aquele seria um Natal feliz e divertido, sem as ameaças que lhe perturbaram a paz nos últimos meses.

Ela bem que merecia uma trégua.

- Sim, Demétrio, pode ter certeza que você será muito útil. Vamos fazer compras de Natal na feira, e músculos são sempre úteis nessas horas.

Afirmou, concordando com as palavras de Madalena.

Demétrio ficou aguardando alguma palavra de Beatrix e ela não disse nada, ele se aproximou, e antes de deixar ela seguir, disse.

- Algum problema? Se sua prima Nicole estiver planejando algo, não se preocupe, estou aqui para salvá-la seja do que for. Pode contar comigo.

Ele disse encarando Beatrix, reparando em como ela ainda estava um pouco corada e ofegante pelo esforço da cavalgada. O traje simples, de cavalgada destacava-lhe as formas mais que os vestidos, e ele não resistiu a apreciar um pouco essa visão.

Antes que ela notasse que ele a estava observando mais do que devia, Demétrio desviou o olhar e notou mais adiante Nicole, que abraçava Madalena. Por um momento ele ficou mais corado e pensou que Madalena pudesse contar algo sobre a noite que passaram juntos.

Beatrix certamente desconfiava de algo, mas seria bem diferente se lhe dessem certeza. Não era algo que lhe trouxesse arrependimento. Foram ótimos momentos. Ele pensou nisso e suspirou.

Demétrio ouviu um sujeito que estava na estrada chamar a sua história de Dramática e realmente não entendeu nada.

Ele de fato às vezes soava um bocado exagerado em suas declarações às donzelas, e algumas até riam de seu ar pomposo que ele ganhara a custa de muitas leituras de romances de cavalaria. Mas era raro que ele percebesse esse tom melodramático que suas palavras tomavam. Normalmente só a bebida fazia com que Demétrio proferisse tais discursos, pois normalmente ele era até tímido demais para isso.

E assim, Demétrio se surpreendeu com aquelas palavras vindas de um estranho que ouvira a sua conversa com as moças.

"História dramática.
Bem Vamos ver qual será seu Final !"

Algumas crianças que brincavam por ali, e aproveitavam a neve que cairá naquela madrugada, agora faziam suas traquinagens, entretidas em guerras de bola de neve. Uma delas jogou uma bola no homem que interferira na conversa dos viajantes e ao ver aquilo, Demétrio sentiu-se vingado. Pela liberdade que as crianças tomaram, aquele bem deveria ser algum "louco de aldeia". Mas enquanto Demétri ria, eis que uma das crianças atirou também uma bola a ele, e mais uma vez ele tinha seu casaco com marcas brancas de neve que escorriam por seu peito.

As crianças continuaram a brincar, e a correr, elas apontavam tanto para Demétrio como para o suposto "louco de aldeia" e riam

- Não sei do que está reclamando. Você desviou e ela acertou em mim.

Demétrio comentou e fez um movimento como se ainda estivesse tirando a neve do casaco.

Ele se sentia ainda um pouco envergonhado por ter praticamente se convidado para aquela ceia de Natal. Ele certamente preferiria passar o Natal com a mãe e toda a família, com a mãe e as avós o aborrecendo e o tratando como criança na frente de dúzias de tios, primos e sobrinhos.
Ele preferia mesmo estar ali. Demétrio não confiava nem gostava de Nicole, e temia que ela pudesse estar planejando fazer algum mal para Beatrix ou mesmo para a Maria Madalena. Era melhor ele estar ali para proteger as duas daquela víbora.

O peru posto sobre a mesa já mostrava seus ossos. Várias garrafas de vinhos haviam sido abertas, os barris de cerveja enchiam as canecas.

Havia uma alegria embriagante envolvendo a todos, até mesmo Arnold. Eduarda estava adormecida, e apenas comera um pouco de peru e do bolo de reis, do qual sorteara o anel e depois fora se deitar, cansada da viagem e desabituada a atividades noturnas.

A festa estava agora entregue aos adultos.

Beatrix bebia a sua terceira ou seria quarta caneca de vinho e agora se servia de cerveja. Também havia comido do peru, da rabanada e do bolo de reis.

Todos bebiam e iam ficando cada vez mais alegres e descontraídos. Cantigas de natal e de taverna foram entoadas na casa de Madalena enquanto a noite seguia.

Demétrio também bebia, como todos ali, despreocupadamente. Ele puxou Maria Madalena e depois Beatrix para dançar. Enquanto Demétrio dançava com Maria, Beatrix puxava Arnold para embriagados passos de dança.

O vinho era forte e bom, e misturado com a cerveja e o whisky foi o suficiente para levar aqueles convivas a um estado de embriaguez que faria com que na manhã seguinte, mal lembrassem do que havia acontecido. Todos, no entanto, depararam-se assustados com os resultados daquela noite, que de festiva e feliz, passaria à desastrosa por conta do abuso do vinho forte dos Casterwill.

Maria Madalena e Beatrix acordaram deitadas uma ao lado da outra, ambas com frio e desnudas, em um celeiro, que ficava perto de um lago, há pouca distância da casa de Maria Madalena.

No mesmo local em que as mulheres despertaram, estavam também Arnold e Demétrio, ambos próximos a elas, e igualmente sem roupas. Demétrio ainda teve o desprazer de acordar abraçado a um porco. A cabeça de todos ali latejava pela ressaca do vinho.

Na casa de Madalena, Nicole despertou, e o seu despertar foi igualmente perturbador.

Ela estava banhada em sangue. Perto de sua mão estava uma faca e caído diante de si estava um homem, que levara várias punhaladas. Nicole nunca vira antes aquele homem, mas pelas roupas, parecia ser um nobre ou alguém importante.

Havia sangue pelo chão e tudo indicava que havia acontecido uma luta, mas Nicole não estava ferida, também de nada lembrava.

Não havia sinal algum da presença de Eduarda, ela desaparecera da casa e ao perceber aquele cenário, Nicole ficou desnorteada, ainda mais por não ver ali sinal nem de Maria, nem de Beatrix, de Demétrio ou Arnold. Havia apenas roupas espalhadas pelo chão da sala e sobre a mesa onde a refeição fora servida.

Diante daquela situação constrangedora e assustadora, nenhum dos convidados da festa lembrava de absolutamente nada da noite anterior, após Eduarda ter se recolhido.

Agora seria preciso recolher os cacos da memória e tentar lembrar o que teria acontecido àquela noite, mas será que alguém iria mesmo querer tais recordações?


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Felizmente Eduarda foi encontrada horas depois na floresta, pois fugira assustada com o ataque de Nicole ao homem que entrou na casa de Maria.

A identidade desse homem, no entanto, para o bem de todos continuará um mistério. Quanto ao resto, é melhor esquecer. Às vezes o esquecimento é uma bênção.

FIM