[RP] Armas e Trovas

Beatrix fez uma vênia rápida à moça que deixava a sala do arauto. Não lembrava de tê-la visto antes em qualquer evento social da família Viana, mas a vida pessoal do arauto John Rafael pouco lhe importava. Suas relações com ele eram apenas de caráter profissional e se restringiam ao ambiente da Heráldica. Mesmo que fossem amigos de longa data, Beatrix era discreta.

Assim, a ruiva não olhou uma segunda vez para a moça loira, nem fez qualquer pergunta sobre a presença dela ali.

- Bom dia. Espero não estar incomodando. O senhor está ocupado?

Beatrix em seguida, cumprimentou John Rafael com uma vênia, e enquanto aguardava a resposta, depositou duas cartas que o rei de Armas havia solicitado que ela entregasse ao arauto. Uma delas era um comunicado, a outra era uma atribuição de trabalho heráldico.

Saiu uma loira, entrou uma ruiva. Mas diferentemente da que acabara de sair, Beatrix Algrave era séria e compenetrada nos assuntos da Heráldica Portuguesa. Mais jovem que Letícia, trajava vestes de arauto, um vestido atabardado, à moda feminina. Possivelmente vinha tratar de algo em relação ao Armorial, que estava atrasado.

-Senhorita Beatrix, bons olhos a veem. Desde o baile da Bússola de Ouro não vejo-te... - um sorriso amarelo fez transparecer que o jovem Viana lembrava da saída à francesa do grupo do bastardo Casterwill, e em como Beatrix fora apagada por Adrian. Como Johnrafael odiava aquele bastardo maldito... - Cheguei há pouco e estava prestes a tomar o meu pequeno almoço, talvez a senhorita possa acompanhar-me, senta-te, por gentileza.

Então notou para que a jovem estava ali. Havia trabalho a ser feito.

Beatrix ouviu as palavras de John Rafael evocando a festa de inauguração da Ordem da Bússola de Ouro e preferiu não fazer nenhum comentário, pois ainda estava constrangida sobre o que acontecera naquela noite. Pelas evasivas de Maria ela tinha a impressão que enquanto estava desmaiada algo mais havia se sucedido, mas como não havia encontrado o momento propício para questionamentos, deixara aquilo de lado.

Ela não sabia se naquelas palavras do arauto havia apenas preocupação por sua saúde ou se ele sabia de algo mais.

- Agradeço, pois ainda não tomei o desjejum. Saí apressada de casa pois não desejava me atrasar. Ia mesmo fazer uma pausa pouco depois da sua chegada.

Ela disse e agradeceu o convite e sentou-se à mesa para o pequeno almoço.

- Trago-lhe mais trabalho, como já deve ter imaginado.

-Muito bem. Rapaz, vá às cozinhas e peça para que venha também o desjejum da Senhorita Beatrix. Mas antes venha cá, traga essa mesa mais para perto da outra.

A mesa para o desjejum era pequena, para caber num canto de parede, e foi trazida mais para o centro. Johnrafael voltou para a sua mesa, analisando as cartas que precisavam de ser refeitas.

-Beatrix, além destas cartas há mais algo a ser feito?

Beatrix aguardou a conclusão do arranjo que um dos pajens fez para que ela pudesse sentar-se confortavelmente à mesa.

Notou que John Rafael concentrara sua atenção nas cartas que ela trouxera.

- No momento é só o que há para o senhor, mas em breve teremos mais trabalho, pois os salões heráldicos reabriram hoje para os pedidos. É disso, suponho, que deve tratar a segunda carta do rei de armas para o senhor.

Ela disse e aguardou que ele abrisse a segunda carta para confirmar suas suspeitas.

- Já ia me esquecendo. A Dama Soraia já enviou a resposta sobre a alteração do seu pedido de brasão de baronete. Peço a um pajem para trazer essa informação ao senhor depois.

Enquanto conversavam, os pajens trouxeram o desjejum. Aquele era mais leve que o habitual desjejum dos camponeses com seu ensopados grossos e gordurosos. Havia um queijo de cabra praticamente inteiro e duas peças de pão de boa qualidade, além de uma tigela de mingau de aveia. Para beber havia uma jarra de leite quente e uma garrafa de vinho. Também trouxeram algumas peras e mel. A refeição foi disposta sobre a mesa e o pajem aguardou que ambos comessem para poder retirar novamente a mesa.
Beatrix serviu-se de pão, queijo e bebeu o leite devagar, pois estava muito quente.

Beatrix costumava ser muito mais extrovertida e espontânea quando estava em ambientes em que se sentia mais a vontade e com pessoas do seu convívio natural. Mas ali nos salões heráldicos, ela portava-se com mais formalidade, discrição e reserva.

A primeira carta era uma correção na carta de armas previamente escrita para o Marquês de Valença, Horacius Edgar de Silva e Sagres. A segunda tinha o mesmo motivo, mas a carta a ser corrigida era da Baronete Ana Lara Saadi Altir.

Enquanto lia as cartas, o desjejum chegou. Serviu-se de queijo, peras e mel. Para a noite maldormida dentro da carruagem não pesar-lhe, serviu-se de algumas colheradas de mingau quente. Ajudou a refeição a descer com uma taça de vinho condimentado, este último apenas morno.

Por alguns segundos, imaginou uma justificativa para que Beatrix, sempre tão dedicada ao trabalho e sem muito tino para as banalidades durante o expediente, aceitasse acompanhá-lo à mesa. Devo estar esquecendo algo, pensou, e tentou descobrir, olhando disfarçadamente para a expressão de Beatrix.

Beatrix notou a expressão de John Rafael e a forma como ele a observava discretamente com um olhar interrogativo, provavelmente por ela fugir do seu comportamento habitual. Como ela gostava de objetividade sorriu e falou o que lhe passava pela mente.

- Sei que já lhe transmiti as ocupações que farão sua manhã atarefada, mas antes de ocupar-se do trabalho teria algum tempo para mim? Trouxe alguns tecidos e esboços de trajes masculinos que pretendo fazer para ampliar a minha clientela no meu atelier de tecelagem e costura. Não sei se teria interesse, pois sei que costuma comprar peças de roupa do estrangeiro, mas não custa oferecer. Acho que nada substitui um bom traje sob medida.

Beatrix disse e sorriu novamente, comendo em seguida um pedaço de pera. Não sabia como ele encararia a sua oferta. Esperava que ele recordasse que ela já havia comentado sobre isso superficialmente.

Então era aquilo. Haviam falado sobre roupas novas há algum tempo, e Beatrix era tecelã. Lembrou-se então do seu armário. A última roupa de qualidade que comprara, viera do Atelier Paris-Milan, e já tinha próximo de um ano. Não lhe envergonhava usar no dia-a-dia a surrada roupa de ferreiro, preta e cinza. Era até mesmo sua marca registrada. Para as ocasiões da heráldica, mantinha o tabardo que usou no reinado da finada Ana Catarina, mais por estima que por qualquer outro motivo. Mas roupas sob medida, tinha poucas.

-Sim, Beatrix. Estou mesmo a precisar de uma nova roupa. Meus justilhos mais antigos apertam inclementemente. Diga-me. A senhorita tem algum tecido bonito em tons de verde, que tire a atenção desta cabeça que ainda não tem suficiente cabelo? - sentia-se meio estranho depois de lhe rasparem a cabeça, semanas antes.

As considerações que John Rafael fizera sobre a necessidade de adquirir roupas novas deixaram a tecelã-arauto mais animada. Ela evitou sorrir da última parte, não ia criticar o corte que o seu colega fizera, apesar de preferir algo menos rente, aquilo não lhe ficava de todo mal. Achava contudo que aquilo calharia melhor para monges em penitência. Apesar dos costumes terem mudado, cabelos curtos ainda eram uma novidade para homens. No passado cabelos longos para homens eram associados à virilidade e o corte dos cabelos remetia a um ritual de humilhação. Por isso tanto freiras quanto frades cortavam os cabelos ao assumir seus votos.

Ela pensava nessas coisas mas aliou o seu pensamento a ação, e abriu a bolsa procurando as amostras que trouxeram. Enquanto isso, respondeu ao colega arauto.

- Tenho tecidos vistosos nesse tom, mas se quiser tirar o destaque de seus cabelos, talvez devesse adotar com mais frequência o uso de chapéus. Eles são essenciais a um homem elegante.

Ela retirou um pacote com vários quadradinhos de tecido recortado. Havia brocados de vários tipos em cetim, bordados a linha dourada e prateada. Havia vários tons de tecidos de veludo e seda, incluindo cinco tons diferentes de verde. Havia tecidos listrados e tingidos em padrões diversos. Era sem dúvida um rico mostruário.

O jovem pajem corria pelos corredores do Palácio de Sintra, seu tabardo farfalhando em seu corpo enquanto desviava de outros funcionarios, alguns carregando grandes pilhas de pergaminhos e outros materiais utilizados no Colégio.

Quase caiu quando se deteve frente a uma das portas, deslizando-se pelo chão para reduzir a velocidade. Respirou profundamente recuperando o fôlego e alisou os trajes, só então tocou à porta do escritório do Arauto John Rafael e aguardou até que ouviu a resposta vinda do interior autorizando-o a entrar.

- Desculpem-me meus senhores Arautos, mas o Rei de Armas solicita a presença da Arauto Beatrix na Biblioteca.

- Está bem, vou atendê-lo imediatamente.

Beatrix disse, já se levantando da mesa. Ela fez uma mesura ao arauto John Rafael e pediu licença para se retirar.

- Creio que isso ficará para outro momento. Vossa licença.

Ela disse, recolheu o material e deixou a presença do arauto e dirigiu-se através dos corredores até a a biblioteca, onde encontraria o Rei de Armas, Yochanan Flavius Viana.