[RP] Armas e Trovas

[Gabinete do Mestre de Armas, Palácio de Sintra, Setembro de 1461]

As reformas estavam quase todas concluídas, faltando apenas alguns poucos detalhes e a limpeza de algumas das salas mais afetadas pela tempestade e a confusão que reinou naqueles salões. Mas apesar dos bravos esforços naquele dia fatídico alguns dos trabalhos sofreram danos.

Alguns deles estavam naquele momento sobre a mesa do Mestre de Armas quem os observava atentamente quando a porta de seu gabinete se abriu e um pagem anunciou ao Arauto que havia mandado buscar.

- Que entre! - disse o Mestre de Armas, acomodando-se na cadeira.

-Senhor meu tio... Mestre Yochanan? Foi perdido muito? - disse o recém chegado Arauto.


Olá sobrinho. -disse o Mestre de Armas levantando de sua cadeira. - Imagino que já deves perceber o porque de eu ter-vos chamado aqui. - concluiu indicando os tomos sobre a mesa. Yochanan sabia que seu semblante não devia ser dos mais animadores, em parte por causa do cansaço que implicava a viagem até Sintra desde o Porto, por outro lado por causa dos danos causados pela tempestade.

-Então, senhor, que tendes para que eu faça?

John, o trabalho que vos tenho não será para nada fácil e vos demandará algum tempo. - foi dizendo o Viana enquanto dava a volta em torno da mesa, passando as pontas dos dedos sobre o tampo de madeira. - Preciso que faças novas copias destes armoriais, recuperando e salvando tudo o que puder. Já os estive a revisar, e felizmente as imagens se salvaram em sua grande maioria. Os textos infelizmente são outra história. - foi dizendo enquanto reunia os livros em uma pilha e os colocava nos braços do sobrinho. - Conto contigo para este trabalho sobrinho. - Concluiu com um sorriso e um toque no ombro do rapaz, queria lhe dar um pouco de confiança, pois sabia que o trabalho que lhe estava encarregando colocaria a prova as habilidades e a confiança do rapaz.

Chaves, 11 de Novembro

Os trabalhos seguiam a passo módico. Os dias eram gastos nas minas, ajudando um condado afundado em dívidas, e as noites, traduzia uma página aqui, escrevia uma linha ali. Para não se perder com tantos escudos, começou a anotar os que tinha.

-Leão de cauda bifurcada em prata, sobre escudo vermelho; Monfortes. Carvalho de sua cor sobre escudo dourado; Carvalhos. Leão de ouro sobre escudo vermelho de bordadura gironada; Silvas. Para os Avis... vejamos... - revirou os arquivos. - Ora... não há aqui os Avis... Olha que isto lá não vai bem...

Alguns instantes depois, concluiu as suas anotações:



-Isso não está bem mesmo... A biblioteca está sem alguns brasões, alguns parecem nem ter sido feitos. Yochanan precisa saber disso. - Foi então em busca do Mestre de Armas, que também estava na estalagem de Chaves.

A noite caiu, e a pequena Amice foi de volta para sua mãe, enquanto o arminho ficou por ali. As armas dos Corleone eram simples, mas o leão no escudete requerera um cuidado especial, e tomara mais tempo do que o jovem Viana pensou. Já trabalhava às velas quando terminou.

-Bem, está mais um pronto. Amanhã, o orgulhoso Leão de duas caudas dos Monforte.



Deixou o escritório e dirigiu-se para cima, para os seus aposentos. Não voltaria para o Porto naqueles dias.

Assim que John Rafael e Letícia entraram no prédio da Heráldica, ambos notaram que havia bastante movimento naquele dia. Volumes de livros e peças heráldicas eram levados para serem organizados e classificados conforme as novas normas da biblioteca heráldica.

Letícia desviou por pouco de um arauto que passava ali carregando um grande pacote

- Desculpe senhorita. São pergaminhos novos que chegaram.

Ele disse dirigindo-se a mulher e fez uma vênia ao arauto John Rafael, temendo levar uma reprimenda ali mesmo.

Não tardou muito até que chegassem ao escritório de John.

Ao entrar, o jovem arauto se encaminhou até uma gaveta, onde pegou uma pequena bolsa de couro. Entrou para outro cômodo e voltou com o pagamento dos serviços de Letícia. As moedas eram apenas um agrado, pois Enrico havia feito o pagamento na Babilônia, dois dias antes. Antes de entregar-lhe a bolsa, retirou de dentro uma moeda, e a depositou no decote da moça.

-Aqui está. Estamos acertados?

Beatrix fez uma vênia rápida à moça que deixava a sala do arauto. Não lembrava de tê-la visto antes em qualquer evento social da família Viana, mas a vida pessoal do arauto John Rafael pouco lhe importava. Suas relações com ele eram apenas de caráter profissional e se restringiam ao ambiente da Heráldica. Mesmo que fossem amigos de longa data, Beatrix era discreta.

Assim, a ruiva não olhou uma segunda vez para a moça loira, nem fez qualquer pergunta sobre a presença dela ali.

- Bom dia. Espero não estar incomodando. O senhor está ocupado?

Beatrix em seguida, cumprimentou John Rafael com uma vênia, e enquanto aguardava a resposta, depositou duas cartas que o rei de Armas havia solicitado que ela entregasse ao arauto. Uma delas era um comunicado, a outra era uma atribuição de trabalho heráldico.

Beatrix ouviu as palavras de John Rafael evocando a festa de inauguração da Ordem da Bússola de Ouro e preferiu não fazer nenhum comentário, pois ainda estava constrangida sobre o que acontecera naquela noite. Pelas evasivas de Maria ela tinha a impressão que enquanto estava desmaiada algo mais havia se sucedido, mas como não havia encontrado o momento propício para questionamentos, deixara aquilo de lado.

Ela não sabia se naquelas palavras do arauto havia apenas preocupação por sua saúde ou se ele sabia de algo mais.

- Agradeço, pois ainda não tomei o desjejum. Saí apressada de casa pois não desejava me atrasar. Ia mesmo fazer uma pausa pouco depois da sua chegada.

Ela disse e agradeceu o convite e sentou-se à mesa para o pequeno almoço.

- Trago-lhe mais trabalho, como já deve ter imaginado.

Beatrix aguardou a conclusão do arranjo que um dos pajens fez para que ela pudesse sentar-se confortavelmente à mesa.

Notou que John Rafael concentrara sua atenção nas cartas que ela trouxera.

- No momento é só o que há para o senhor, mas em breve teremos mais trabalho, pois os salões heráldicos reabriram hoje para os pedidos. É disso, suponho, que deve tratar a segunda carta do rei de armas para o senhor.

Ela disse e aguardou que ele abrisse a segunda carta para confirmar suas suspeitas.

- Já ia me esquecendo. A Dama Soraia já enviou a resposta sobre a alteração do seu pedido de brasão de baronete. Peço a um pajem para trazer essa informação ao senhor depois.

Enquanto conversavam, os pajens trouxeram o desjejum. Aquele era mais leve que o habitual desjejum dos camponeses com seu ensopados grossos e gordurosos. Havia um queijo de cabra praticamente inteiro e duas peças de pão de boa qualidade, além de uma tigela de mingau de aveia. Para beber havia uma jarra de leite quente e uma garrafa de vinho. Também trouxeram algumas peras e mel. A refeição foi disposta sobre a mesa e o pajem aguardou que ambos comessem para poder retirar novamente a mesa.
Beatrix serviu-se de pão, queijo e bebeu o leite devagar, pois estava muito quente.

Beatrix costumava ser muito mais extrovertida e espontânea quando estava em ambientes em que se sentia mais a vontade e com pessoas do seu convívio natural. Mas ali nos salões heráldicos, ela portava-se com mais formalidade, discrição e reserva.