Maitresse_de_maison
(Soundtrack)
A moça chegou no final do mês de fevereiro. A princípio desconfiei, trazia pouca bagagem, usava roupas muito simples para uma nobre e os cabelos soltos e desalinhados, como os de uma criança. Não falava palavra de francês, nem esforçava por comunicar-se, sempre quieta, taciturna.
Com o passar dos dias acabei por afeiçoar-me a ela, em observar-lhe os modos e atitudes gentis. Dona de um brilho nos olhos que não consigo descrever com exatidão, ao mesmo tempo em que seus olhos sorriam, pareciam marejados. Cativou-me.
Destinei-lhe um quarto pequeno, próximo da escada, sem janela além de uma pequena abertura para ventilação. Parecia satisfeita, não se queixou, e passava os dias a estudar à luz do candeeiro. Quando a temperatura era mais amena, ficava no jardim. Comia pouco, não era exigente com o que era servido, na maioria das vezes a terrina retornava quase intocada.
Com o passar dos dias decidi oferecer um quarto melhor, no andar superior, com muita claridade, para que pudesse estudar, e ar fresco, a ver se melhorava o apetite. Esboçou um sorriso e agradeceu, fez a mudança calada, e deixou-me com a dúvida se, para ela, realmente fazia alguma diferença.
Mantinha o aposento arrumado e limpo, pouco deixando afazeres para as criadas do hôtel. Às vezes voltava da Biblioteca trazendo algumas flores, que arrumava caprichosamente na caneca dágua. Ofereci um vaso pequeno, de porcelana rara... trincado, é fato, mas quase não se percebia e era bem vistoso. Para além dos livros e pergaminhos, objetos de escrita e o suave odor de lavanda que emanava de suas roupas, o vasinho florido era o único toque pessoal que acrescentara ao quarto.
Recebia algumas cartas, de tempos em tempos. Vinham de variadas origens, de Portugal, a maioria delas. Tenho por hábito colocar a correspondência dos hóspedes por baixo da fresta da porta, mas entregava a ela as cartas pessoalmente. Eram as oportunidades de vê-la sorrir, e eu gostava. Nos dias em que as cartas chegavam, podia ouvi-la cantarolar, uma voz suave e afinada, embora não percebesse o que as canções diziam, o tom demonstrava que eram cantigas alegres. Nessas horas, era eu quem sorria.
Logo que chegou recebeu uma carta que a deixou muito entristecida. Ao jantar sentei-me perto dela, os olhos vermelhos e levemente inchados, tinha chorado muito. Pareceu aliviada em ter-me como companhia, e apesar da comunicação plena impedida pela barreira do idioma, conseguiu contar-me da morte de um bom amigo, muito querido a ela. Falamos como pudemos a respeito da vida, contou-me que era idoso, falamos sobre perdas... eu gostaria de comunicar-me com mais exatidão, ela também, mas por mais que saiba que não falamos o que ou como gostaríamos, de alguma forma, nos entendemos.
Por estes dias recebeu uma outra carta. Entreguei a ela, já a espera do sorriso, mas ao reconhecer a caligrafia pareceu preocupada, uma ruga entre as sobrancelhas, deixei-a só. Não desceu para o jantar, nem foi a Universidade. Antes de recolher-me preparei uma caneca de leite perfumado com canela, que ela tanto gostava, e bati de leve na porta.
Abriu a porta devagar e recebeu-me na soleira, sem convidar-me para entrar como era o costume, o corpo ocupando a brecha aberta. Sua fisionomia estava endurecida, inexpressiva. Os olhos estavam diferentes, como jamais havia visto naquele rosto tão gentil.
Ofereci o leite, fez um aceno de cabeça e pegou sem sequer olhar, quanto mais aspirar o aroma da canela, como gostava de fazer, e virou-se para colocar a caneca sobre a mesinha. Não me contive, avancei dois passos. Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, de costas para mim, e apoiada no espaldar da cadeira.
Sem saber como proceder, já que tinha avançado, perguntei a ela: Quelqu'un est mort? Demorou alguns instantes a virar-se, mas quando o fez, arrependi-me imediatamente de ter perguntado. Não havia naquele rosto a sombra do que conhecia, o próprio ato de virar-se pareceu deliberado, como se estivesse esforçando-se para dominar o corpo e ordenar-lhe movimentos.
Olhou-me nos olhos, respirou fundo, e susteve a respiração por alguns instantes. Soltando o ar, e numa voz grave, firme, irreconhecível, respondeu-me:
Moi
A moça chegou no final do mês de fevereiro. A princípio desconfiei, trazia pouca bagagem, usava roupas muito simples para uma nobre e os cabelos soltos e desalinhados, como os de uma criança. Não falava palavra de francês, nem esforçava por comunicar-se, sempre quieta, taciturna.
Com o passar dos dias acabei por afeiçoar-me a ela, em observar-lhe os modos e atitudes gentis. Dona de um brilho nos olhos que não consigo descrever com exatidão, ao mesmo tempo em que seus olhos sorriam, pareciam marejados. Cativou-me.
Destinei-lhe um quarto pequeno, próximo da escada, sem janela além de uma pequena abertura para ventilação. Parecia satisfeita, não se queixou, e passava os dias a estudar à luz do candeeiro. Quando a temperatura era mais amena, ficava no jardim. Comia pouco, não era exigente com o que era servido, na maioria das vezes a terrina retornava quase intocada.
Com o passar dos dias decidi oferecer um quarto melhor, no andar superior, com muita claridade, para que pudesse estudar, e ar fresco, a ver se melhorava o apetite. Esboçou um sorriso e agradeceu, fez a mudança calada, e deixou-me com a dúvida se, para ela, realmente fazia alguma diferença.
Mantinha o aposento arrumado e limpo, pouco deixando afazeres para as criadas do hôtel. Às vezes voltava da Biblioteca trazendo algumas flores, que arrumava caprichosamente na caneca dágua. Ofereci um vaso pequeno, de porcelana rara... trincado, é fato, mas quase não se percebia e era bem vistoso. Para além dos livros e pergaminhos, objetos de escrita e o suave odor de lavanda que emanava de suas roupas, o vasinho florido era o único toque pessoal que acrescentara ao quarto.
Recebia algumas cartas, de tempos em tempos. Vinham de variadas origens, de Portugal, a maioria delas. Tenho por hábito colocar a correspondência dos hóspedes por baixo da fresta da porta, mas entregava a ela as cartas pessoalmente. Eram as oportunidades de vê-la sorrir, e eu gostava. Nos dias em que as cartas chegavam, podia ouvi-la cantarolar, uma voz suave e afinada, embora não percebesse o que as canções diziam, o tom demonstrava que eram cantigas alegres. Nessas horas, era eu quem sorria.
Logo que chegou recebeu uma carta que a deixou muito entristecida. Ao jantar sentei-me perto dela, os olhos vermelhos e levemente inchados, tinha chorado muito. Pareceu aliviada em ter-me como companhia, e apesar da comunicação plena impedida pela barreira do idioma, conseguiu contar-me da morte de um bom amigo, muito querido a ela. Falamos como pudemos a respeito da vida, contou-me que era idoso, falamos sobre perdas... eu gostaria de comunicar-me com mais exatidão, ela também, mas por mais que saiba que não falamos o que ou como gostaríamos, de alguma forma, nos entendemos.
Por estes dias recebeu uma outra carta. Entreguei a ela, já a espera do sorriso, mas ao reconhecer a caligrafia pareceu preocupada, uma ruga entre as sobrancelhas, deixei-a só. Não desceu para o jantar, nem foi a Universidade. Antes de recolher-me preparei uma caneca de leite perfumado com canela, que ela tanto gostava, e bati de leve na porta.
Abriu a porta devagar e recebeu-me na soleira, sem convidar-me para entrar como era o costume, o corpo ocupando a brecha aberta. Sua fisionomia estava endurecida, inexpressiva. Os olhos estavam diferentes, como jamais havia visto naquele rosto tão gentil.
Ofereci o leite, fez um aceno de cabeça e pegou sem sequer olhar, quanto mais aspirar o aroma da canela, como gostava de fazer, e virou-se para colocar a caneca sobre a mesinha. Não me contive, avancei dois passos. Ela permaneceu alguns segundos em silêncio, de costas para mim, e apoiada no espaldar da cadeira.
Sem saber como proceder, já que tinha avançado, perguntei a ela: Quelqu'un est mort? Demorou alguns instantes a virar-se, mas quando o fez, arrependi-me imediatamente de ter perguntado. Não havia naquele rosto a sombra do que conhecia, o próprio ato de virar-se pareceu deliberado, como se estivesse esforçando-se para dominar o corpo e ordenar-lhe movimentos.
Olhou-me nos olhos, respirou fundo, e susteve a respiração por alguns instantes. Soltando o ar, e numa voz grave, firme, irreconhecível, respondeu-me:
Moi