--Manuelnoronhadelencastre
No topo da colina vinícola aninhava-se uma pequena casa. As paredes de pedra gasta e enegrecida pelo tempo, perdiam-se na imensidão da paisagem. No pequeno alpendre de madeira, um jovem de olhos azuis e cabelos castanhos olhava o mundo a seus pés. Para onde quer que olhasse, veria as colinas marejadas pelas vinhas organizadas em socalcos. Perdidos entre o verde das folhas e o roxo da uvas, os camponeses labutavam. Quase como um sussurro, ouvia os cânticos entoados por vozes agudas. Ali não se trabalhava sem cantar. Entre as colinas, corria o rio, rápido e cristalino. Ocasionalmente passava um barco carregado de pipos com o líquido doirado. Aquelas águas eram a fonte da riqueza do Porto e a porta de saída para o mundo.
Em petiz passara os tempos livres a desenhar mapas na terra poeirenta. Ao olhar aqueles mapas Manuel sonhava com terras longuíquas e exóticas. Quantas palmadas na cabeça levara o rapaz por falar besteiras como aquela... filho da terra à terra pertence. Eventualmente, aprendeu a sonhar calado, mas sonhava... e como sonhava!
Por bondade do Padre Joaquim, Manuel aprendera a ler e a escrever em tenra idade, desde esse dia que anotava num pequeno caderno de folhas gastas e velhas o que ia aprendendo nos livros que o Padre lhe emprestava. Naquele momento, segurava o caderno com força entre as mãos, talvez com medo de o perder, talvez com medo de tudo ser um sonho.
Manuel! Rapaz! Anda cá! - afinal era tudo real.
Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz aguda e estridente da mãe. Manuel adorava aquela mulher baixa e de pele trigueira, mas por vezes conseguia exasperá-lo.
Já vai! - gritou enquanto punha os olhos uma última vez no rio e se voltava para entrar em casa.
Maria dos Anjos já não era uma mulher jovem, machas brancas pontuavam o seu cabelo outrora negro, o rosto estava marcado e delineado por rugas e os seus olhos vivazes iam perdendo o encanto. A pequena mulher estava de volta do fogo que ardia na lareira. Apesar do seu corpo roliço tapar parcialmente a abertura, Manuel depreendeu que a lenha estivesse para acabar.
Manel, filho, preciso de mais uns paus. O sol já vai alto, não tarda para que o povo chegue para o almoço. Sabes bem como o trabalho é duro e a fome mói. Ó se mói...
Assim que Maria dos Anjos acabou de falar, Manuel assentiu com a cabeça e voltou a sair, indo em direcção ao pequeno barraco na traseira da casa. Perdido entre o amontoado de lenha, o jovem empilhava uns quantos paus nos braços enquanto trauteava uma cançãozita qualquer.
Gosto de te ver quando trabalhas... Principalmente quando me mostras esses teus braços. - Francisca aproximou-se de Manuel com um olhar matreiro e um sorriso nos lábios. Achegando-se do rapaz passou-lhe uma mão pelo rosto.
O que fazes aqui? Não devias estar com as outras moças? - inquiriu algo preocupado ao mesmo tempo que espreitava por cima de Francisca.
A expressão facial da moça alterou-se abruptamente. Magoada com as palavras de Manuel deu-lhe um pequeno encontrão e correu porta fora, deixando-o sozinho.
Mulheres... todas iguais... - murmurou com os seus botões ao mesmo tempo que abanava a cabeça em desaprovação.
Voltou à casa cabisbaixo e taciturno, Maria dos Anjos chilreou toda a manhã, mas Manuel não a ouviu. Eventualmente chegaram os seus irmãos e o pai para o almoço, Manuel voltou a não ouvir nada. Pouco lhe interessavam as conversas sobre a labuta da terra, menos ainda lhe interessava saber se a Júlia iria casar com o António ou com o Henrique. Aquele mundo era pequeno demais para si.