Aqueles últimos momentos cruzavam a sua mente, difusos como imagens de um conto que não era seu. Fragmentos e sensações se misturavam em uma massa informe de memórias. O piso de pedra fria e dura baixo seus pés, as barras de ferro ásperas em suas mãos, o cheiro forte e pérfido que impregnava aquele lugar, os sons apagados do desespero e o silêncio da desesperança enchiam seus ouvidos. O doce toque dos lábios dela, os protestos da filha arrancada dali, o pequeno frasco de vidro, vazio em suas mãos, o remorso pela dor que era necessária infligir naqueles a quem amava. As vestes novas contra sua pele, o líquido amargo já em seu estomago, seu passo digno em direção ao cadafalso, o toque áspero da corda, o vazio baixo seus pés, a escuridão e o frio.
Agora caminhava sobre um caminho de terra e pedra, gasto pelos pés de muitas gerações, ladeado de espinheiros tão altos como ele e com espinhos, afiados como uma navalha, do tamanho de seu polegar. As curvas de caminho, seus cruzamentos e bifurcações, não deixavam antever o que havia muito mais adiante, mas ele já estivera ali antes, e ainda que não fosse ali, era para aquele lugar que ele havia estado indo nos últimos meses durante suas visitas ao quarto secreto do templo romano nos Paços dos Arcanjos. Aquela era a visão do Caminho, cujo passo é estreito e os perigos inúmeros.
Por longo tempo ele caminhou por aquela terra de eterna penumbra até chegar a um espaço aberto, como uma praça, do qual partiam dez caminhos considerando aquele pelo qual havia chegado. Cada um desses caminhos tinha seu ingresso marcado por um símbolo e no centro daquela praça haviam nove assentos em torno ao mesmo símbolo que aquele no portal pelo qual havia cruzado. Um símbolo que ele carregava: A Cruz dos Azure.
A visão que ele havia tido tantos anos antes durante seus estudos em Bayt Ghyr Marwf se repetia, igual mas distinta. O símbolo no centro daquela praça, gasto pelo tempo, ficara difuso e quebrado. O fim da Ordem de Azure se anunciava e um novo tempo teria inicio nas fauces do Ouroboros.
Sentiu o frio, um golpe de ar levou a visão para longe e se viu submerso, cercado por água e sangue e morte. Abriu a boca para respirar, mas não havia nada. Tentou se mover, mas estava preso dentro de si mesmo. A escuridão e o frio cercavam cada centímetro do espaço ao seu redor. Sentiu o peso de si mesmo, e as forças abandonar-lo, viu seu pai e sua linhagem, viu sua Ordem, seu propósito e seu fim. Viu a Luz e a Sombra em sua dança eterna e sentiu paz e temor, quão belo e frágil era o Equilíbrio e quão terríveis eram aquelas duas forças, ambas capazes de criar e destruir com a mesma facilidade.
Sentiu um lento palpitar em seu ouvido, como trovões de uma tempestade distante, e então abriu a boca em busca do ar que encheu seus pulmões, e os olhos viam a imagem de um mundo renascido para ele e ardiam como se os tivesse aberto nas águas do mar.
Sentia a garganta seca e os lábios requebrados, as mãos e pés os sentia entumecidos, os braços e pernas formigavam. Sentiu-se tonto, e novamente foi abraçado pela escuridão, mas desta vez, pela escuridão reparadora de um sono sem sonhos acompassado por uma respiração tranquila.