Bento caminhava recurvado, o cabo do seu pequeno punhal preso por entre dentes cerrados, as suas mãos apalpavam o terreno adiante, procurando por pequenas instabilidades que lhe pudessem custar a vida. A chuva que começara a cair momentos antes escorria sem cessar complicando um percurso já de si moroso e arriscado. Atrás de si, as vozes da Guarda Real erguiam-se em horror e o Castelo parecia despertar do seu torpor, pois não tardava para que a morte da Rainha fosse anunciada. Aquele pensamento apertou-lhe o coração e lágrimas salgadas misturaram-se com a chuva que lhe molhava o rosto.
Foi com trepidação que Bento continuou a sua caminhada instável sobre o telhado do Castelo Real, o remorso que carregava em si um peso adicional que lhe vergava a vontade e lhe toldava o pensamento. No seu encalço vinha Fitz, os seus movimentos ágeis carregados de fúria e intento, em tudo contrastavam com o arrastar serpentino de Bento, e o homem do capuz soube nesse instante que o seu reencontro com Marih seria mais rápido do que aquilo que antecipara.
Um relâmpago iluminou a noite escura como breu, bifurcando o céu em todo o seu esplendor e o som ribombante que se seguiu foi suficiente para abanar a edificação. Aproveitando o súbito clarão, Bento gatinhou até à extremidade do telhado, empoleirando-se sobre as telhas mais frágeis, os seus olhos fixos no infinito. A sua capa negra ondulava ao sabor do vento enraivecido, tal e qual a vela de um navio preso em tempestade. Por momentos considerou implorar clemência, uma última oportunidade para beijar os lábios daquela que ainda detinha todo o poder sobre si, pois se não podia partilhar uma vida com ela, talvez ainda pudessem partilhar o leito da morte. Abanou a cabeça violentamente, que tolo que era! Marih nunca o perdoaria!
O rosto de Bento contorceu-se num esgar de dor e o homem do capuz contemplou as suas mãos imundas. As gavinhas do delírio que lhe consumira a mente durante meses e meses a fio pareciam esvair-se como fumo no ar e uma nova certeza nascia em si. Não era digno de amor ou perdão, nem sequer era digno de compaixão ou pena, uma vida de sofrimento não seria suficiente para purgar uma alma tão pestilenta, mas cobarde como era, também não seria capaz de entregar o seu destino a mãos alheias.
Fechou os olhos e reclinou a cabeça para trás, focando-se na chuva fria que lhe lavava o rosto, enquanto a sua mão direita agilmente dirigia o punhal por entre duas costelas, perfurando pele e músculo, até a lâmina estar bem enterrada no seu pulmão. Arfou, desesperado, e um gorgolejo horrível, banhado a sangue, fez-se ouvir:
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Marih, meu amor, perdoa-me. Urrou quando a lâmina fria se contorceu dentro de si e impulsionou o corpo para a frente, atirando-se para o jardim, a altura elevada demais para que houvesse qualquer hipótese de sobrevivência. Com o impacto da queda, sentiu a lâmina enterrar-se mais dentro de si até nada mais restar no exterior para além do pequeno cabo de madeira. Doía-lhe tudo, a sua perna estava contorcida num ângulo estranho e os seus lábios estavam cobertos pelo sangue que lhe escorria pelo canto da boca e fluía por entre a erva verde. Uma mancha de vermelho formava-se em torno do seu corpo prostrado.
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Marih... - Suspirou e sentiu a vida abandona-lo repentinamente. Como se depois de todo o mal que provocara o nome dela fosse suficiente para expia-lo.