Aristarco
Aristarco cavalgava sem a menor pressa ou preocupação: depois de alguns meses de faina a se apresentar em alguns salões, usualmente estes lugares que lhe rendiam alguns âmerréisâ bem avolumados (quando alguns nobres resolviam cumprir com a palavra da paga...), e também várias tabernas, afinal é preciso acudir almas de nobres e plebeus, endinheirados e miseráveis, oras pois, qual seria o fito dâum trovador que não este, imaginai, lá ia ele tranquilamente em direção daquelâ burgo dâOurém.
E o fazia com intuito mesmo de se afastar um tanto do seu alaúde tocado publicamente (porque sempre estaria com ele), como um interstÃcio em que um trovador carece para algo estudar trivialmente fontes e registros, glosas antigas e informações quaisquer que lhe pusessem à destinação dâalgum trabalho maior de composição (enganam-se aqueles que acham a composição ser algo apenas da inspiração dâalguma musa: também são mui de estudo e investigação documental: se há benesse [ou maldição] divina, talvez não se saiba, mas que há trabalho para os homens, HesÃodo o bardo [hô rapsoidós] helênico já alertara...).
O andamento, que imprimia ao cavalo, era nada mais nada menos do que a passada, a mais lenta. O senhor Eudoxio lhe recordava, apesar de não ter boas reminiscências recentes com os cavalos assim dizia, que talvez lhe fosse melhor um palafrém a um cavalo comum, para um trovador. Assim qualquer viagem lhe seria mais confortável e até mesmo barata (afinal cavalos não treinados como o palafrém exigem mais cuidados e despesas quando em viagem). O que dizer então daquele charmoso âmeio-troteâ do palafrém, passada cômoda para a montaria, rápida para o viajante sem desgaste do trote ou galope.
De fato estava certo o amigo, mas havia encontrado uma boa montaria, um tÃpico ibérico comum, mas robusto. Um grande comerciante de tecelagens e muitas outras cousas mais, mestre Yoshie de Morii itálica, lhe financiara em Setúbal e ajudara naquela aquisição de maneira irrecusável; e além do mais, acabara rapidamente por se afeiçoar ao animal sem poder pensar em uma permuta qualquer, dando-lhe o nome de Graelent, quando se lembrava do conto (dentre muitos) que sua mãe lhe narrava quando pequenino.
Graelent fora um cavaleiro bretão nobre de grande gentileza e cortesia, mas de triste fim, e Aristarco pensava em fazer trovas sobre muitos contos daquela espécie, narrativas trovadas na lÃngua lusitana, por que não; e não era justamente para estas cousas que se dirigia à biblioteca do Condado?
Outros trovadores lhe haviam recomendado, ainda que as buscas daqueles fossem mais ibéricas, mas diziam que havia por lá em Ourém alguns registros das Bretanhas, mas que nada entendiam da lÃngua, o que lhe fez brilhar os olhos: pensava em sua mãe a narrar mui contos, nos rudimentos da lÃngua que absorvera, assim como os ensinamentos do monge Liam de Downe, natural daquelâ velha âHibérniaâ misteriosa para os romanos (Irlanda), com quem convivera toda sua juventude em Faaron (Harun) del al-Gharb.
Muito devia àquele generoso monge.
Não havia pressa, não havia pressa, as buscas entre as prateleiras (tão empoeiradas quanto suas roupas de viajor) e recônditos baús ou depósitos de pergaminhos lhe aguardariam e teria um tempo considerável para lá se instalar e se transformar naquilo que em Faaron diziam os monges copistas, âum rato de bibliotecaâ.
E naquele passo de Graelent, fazia-o seguir simplesmente a estrada, sem precisar guia-lo, tendo amarrado por uma corda folgada à sela o seu velho burro Juventino que carregava a carga de algumas roupas, livros, muitos pergaminhos e âtinteiro de campanhaâ, como gostava de dizer, assim como alforje com comidas e algum apetrecho de pouso ao caminho (caso precisasse ficar debaixo do teto de estrelas, cousa que acontecia aos viajantes à s vezes). Também seu cajado, boa proteção que lhe prestava habilidade.
Sem as mãos na rédea do animal, tocava seu alaúde e cantava naquele vagar esquecido por Deus, como se tempo e lugar daquele mundo não pertencessem.
A canção era dâuma passagem dâum conto bretão, em que se transformou em um ditado vilão mui popular naquelas plagas distantes:
⪠âDe homem não nasce, é espÃrito sem donoâ
Juventino deu um urro baixo, em que pareceu a acompanhar aquele ritmo, fazendo quase com que Aristarco se risse com os dons musicais daquele, mais acostumado a acompanhá-lo do que Graelent.
âQue nunca dorme nem conhece o sono...â â«
E sem olhar para trás, seguia pelo caminho naquela morosidade no que agora se fazia uma pequena colina ao caminho bem logo ali à frente; na verdade mui enganadora porque de pequena nada tinha e pobre do incauto que confiasse à visão apenas.
Apesar da despreocupação, certamente aquele trecho enquanto fosse vencido, consumiria um tanto... um tanto de canções...