Para encerrar aquele dia, chegara Aristarco finalmente à taberna e esta, diferentemente do ambiente citadino exterior que se recolhia cada vez mais enquanto o poente se fazia firme naquele domingo, encontrava-se em completa movimentação se não de alegria, então de copos indo e vindo, assim como beberrões a verterem goela abaixo verdadeiros barris em quantidade de cerveja e rum; sim, Montemor era assim aos domingos, afinal toda a rudeza dos trabalhos logo começaria no dia seguinte, e era preciso aliviar corações e intelectos em boa taberna...
O trovador pensava na longa viagem que estava por vencer mais uma etapa, as experiências convividas com os amigos-viajores, em momentos difíceis de exigências, assim como naqueles compartilhados que arrancam risada e festejo; pensava nas agruras de trechos nos caminhos, onde tempo e terreno pouco ajudavam, quando haviam de contar com a mão doutro para prosseguir em frente.
As damas de Portugal ou de Castela a inspirar gentileza e cortesia por onde se passava, ou os bandidos e malfeitores a despertarem total e completa atenção nas estradas, a se armarem contra alguma vilania possível.
Não conseguia deixar de pensar nestas cousas todas, quanto mais chegavam perto de casa, sendo tocado pela típica contradição: vigília-sono, cansaço-descanso, bem-mal, partidas-chegadas, viagens-descanso, mudanças de estados contínuos e alternâncias teoricamente contraditórias.
Quando pensou naquela, talvez mais a atarantar os corações humanos, vida-morte, a de caráter mais decisivo.
Pediu um bom rum e ficou a pensar longamente naquilo... Até lhe alcançar o pensamento dalguém que recentemente morrera, o rei castelhano, não muito tempo depois de sair a comitiva salaciense de Valladolid à regresso.
Morte é morte, seja de rei ou de escravo, de nobre ou plebeu, de ancião ou de infante, ou de qualquer outra alternância de espécie que se pensasse, acerca da contradição. Cessação da vida.
Ficou um pouco amuado então, e nem um barril de rum lhe poderia arrancar um riso porque a rudeza que sentia não era aquela dos dias, enquanto olhava aqueles convivas com tal destino, era aquela que às vezes espezinha o coração a fazer mover-se do tamanho dum punho, para o tamanho dum polegar.
Resolveu assim, amainar seu íntimo com aqueles males que já lhe acometiam, assim como suavizar o cansaço natural da chegada à Montemor, com uma cantiga que já criara no dia que soubera da morte daquel El Rey, mas sem alaúde, é claro (eis aí uma outra estória...), com uma melodia que já talhara lá com seus botões e ficava bem ao canto.
Então assim se fez audível em uma apresentação na taberna da vila, após alguns tragos...
EL-ZÉJELMi SeñorTristeza que hace muy sufrir,
Cuando mi señor morir.
En un día que hace mucha tristeza
Me pasa y me deja con la presteza,
Y devuelva a mí la fortaleza
Para esperanza ocurrir.
Tristeza que hace muy sufrir,
Cuando mi señor morir.
En noche que me encobre duramente
Me recuerdo del señor gentilmente,
Y venga un corazón cálidamente
Para entonces yo sonreír.
Tristeza que hace muy sufrir,
Cuando mi señor morir.
Cantara bem, chegando a repeti-la, apesar dalgum efeito do rum a começar a rodopiar a cabeça; só depois percebeu que eram as palavras de pesar que seriam entregues por missiva na já distante Coroa de Castela, à Marquesa de Santillana; e em castelhano, não em português, um descuido de seu cantarolar (talvez outro efeito do rum)...
Mas o próprio mestre-taberneiro que já lhe conhecia, bateu palmas e riu, e outros mais repetiram o gesto.
Uma breve transgressão não era de todo mal.
Isto deixou Aristarco um pouco mais à vontade, afinal, estava triste, ainda que não transparecesse.
O trovador fizera repetidas vênias de agradecimento, assim como se equilibrara um pouco para não cair numa ou noutra...