Aristarco
Aristarco acordara mui cedo, mais do que o esperado para alguém que há dias colocava-se às estradas, naquele perambular típico que trovadores fazem a buscar eventos onde bom número de pessoas lá se encontraria, porque assim convinha o papel de bom trovador. Ao menos daquele que intentasse a vida de trovador, porque ser bom trovador realmente, eis outra história completamente diferente, bem sabeis.
Mas deixai estar, porque estas cousas são assim mesmo, e nada como o próprio correr dos dias para dar cabo naquela maturação deveras conhecida dos homens: a própria rotina tem de suas benesses quando propicia repetição, talvez a possibilitar alguma mestrança, seja na Arte ou em quaisquer outros ofícios. Ao menos daquele que também assim se colocasse como meta, porque também não há relação necessária duma cousa com outra; ora pois, cá estaríamos aqui a filosofar mais uma vez, quando tempo e espaço seriam outros ao fazê-lo.
Decerto que se encontrava um tanto cansado o trovador, se bem que aquela estada na taberna mais movimentada da vila, mui lhe houvesse recobrado ânimos quando assim conhecera diferentes disposições de espírito daquelas que até então absorvera nestas andanças festivas em outras praças; vejais como os lusitanos são inclinados a boa cantoria e festivais.
Não se poderia estar em todos os lugares de comemorações, exceto que por Jah houvesse algum dom de onipresença, quando disto não participa a natureza dos homens, mas com algum esforço (ou boa vontade, por assim dizer), podia-se lá visitar mui plagas aqui e acolá com todas as suas gentes mui peculiares. E lá ia aquela trupe, nestas intenções.
Saiu da hospedaria caminhando e conferido seu alforje, que continha um punhado de frutas assim como água, para algum breve desjejum; levava sempre alguns pergaminhos (que se amassavam costumeiramente) com tinteiro de campanha, apesar de formarem desta vez um volume menor por disputar espaço com o alimento. Não pensava em quanto tempo demandaria sua ausência, por isso se bem fazia não confiar na calmaria da barriga, quando o danado leão ali haveria de rugir e reclamar bravamente.
Como se dizia um ditado por aí alhures, saco vazio não pára em pé, só faz olé; tinha lá suas razões.
Inevitavelmente se lembrou da corrida de sacos de Artois, a comemorar os anos de Alcácer, que desafortunadamente não poderia nesta vez comparecer e um mote traquina passou-lhe à mente: sem corrida de saco, que na palavra empaco; precisaria prosseguir jornada segundo arranjos ulteriores e palavra dada nunca volta atrás, exceto acompanhada da consorte vergonha.
Caminhou na direção do lugar onde as montarias estavam, com um sorriso discreto, quando supunha que qualquer cousa da vida, da mais simples a mais inimaginável, poderia virar mote e até motejo, este último mais quando o rum subia à cabeça do bardo.
Mas não menos, fazia as pernas trançarem pelas ruas, oras, que embaraçoso por vezes; algo deveras comum de ver junto à marujada, afinal era algo típico das cidades com portos, quando revira mais uma vez os movimentos daqueles à noite.
Ai daqueles homens-do-mar assim que pusessem pés casa adentro: dum lado a fúria do mar de monstros temíveis, doutro a brabeza em terra dos humores de suas mulheres. Se alguém souber o que é pior que assim o diga, apesar de se recomendar prudência na resposta, tamanha dificuldade (e periculosidade) da questão.
Arrumou um dos cavalos de viagem com uma boa sela, depois de jogar alguns cruzados a mais nas mãos do dono da hospedaria que mantinha aquele préstimo de cuidado para montarias e cousas do tipo.
De sorte que felizmente os cavalos não eram pertencentes à hospedaria porque talvez sobrasse mui pouco para o viajante pagar uma refeição, tamanha condição de seu dono a custear tão caro aqueles serviços.
Nada a objetar (talvez só um pouco pelo desvio de conduta alheia), porque havia dois caríssimos e estimados amigos, sem dizer o seu aprendiz, a formar aquele pequeno grupo que merecia o melhor, sem dúvida, em sua modesta opinião.
Aristarco logicamente deixou de acordá-los e encontrá-los naquela manhã, porque pareciam ainda mais cansados e Alcácer já se mostrara desde o momento que ali chegaram, ser um bom ponto de interrupção ainda que breve daquelas jornadas que ainda se seguiriam; fazia mui bem respirar um pouco a brisa marítima, com aquele odor levemente salgado que lhe invadia as narinas.
Cheiro de mar.
O velho mar...
Lembrara-se repentinamente dum mote alheio que dizia algo em torno de ondas que vai e vem, devolvam esperanças que mo convém, duma cantiga que não terminara, depois que perdera vários registros por velhas estradas mouriscas (ou romanas, melhor dizendo) da taifa, há mui tempo.
O dissabor fora tão grande, daqueles assaltantes de caminhos em algum ponto de al-Gharb, que Aristarco interrompeu por longo período as composições das peças. Uma má e inusitada sorte porque pareciam berberes, mais difíceis de serem vistos nos lugares litorâneos.
Enfim o passado era passado, não havia mais um porquê de lamentar, ainda que jamais esperasse lembrar algo como aquele detalho do que na juventude houvera feito e mais tarde perdido.
Suspirou e ficou em silêncio por um átimo.
Montou o cavalo (que boa sensação, sempre), e com alguns estalos de boca e movimento de pernas usuais, já saiu no trote com o animal para passear um tanto por Alcácer.
Destino? Ruelas ou canteiros, praça ou picadas, talvez ali na praia não mui longe, tanto faz, afinal, ficara com uma boa impressão na taberna naquela noite anterior, de maneira que diversas cousas não importavam naquela manhã.
Tinha uma sensação de que uma trova ia rebentar de seu interior a qualquer momento, o que também lhe serviria a boa memória caso faltassem pergaminho, pena e tinteiro, haja visto tais apetrechos não estarem em todos os momentos à mão de alguém a cavalgar. E sair com um cavalo, não tinha mui participação destas cousas, exceto pela lembrança que seria mui bem exercida em momento de parada.
E o que seria dum trovador sem memória treinada e eficaz? Melhor seria arriscar-se noutro ofício, caso contrário pouco teria o que forrar a barrigada no dia seguinte, convenhais.
O alaúde desta vez, também não faria companhia, bem pousado que estava sobre a cama do quarto.
E lá se foi Aristarco, pondo a montaria em um trote mui confortável e tranquilo, sob os auspícios da breve passagem na vila, como tudo assim o é em verdade, eis brevidade da vida.
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| Secrétaire Royal | Minstrel of Gharb al-Ândalus | Flemish-breton of Iberia: al-Musta'rib |