Aristarco
Aristarco aguardou que fosse transportado o féretro da Capela Real, quando todos se colocavam a acompanhar até a carroça mui enfeitada que haveria de prosseguir para a capela nobiliar; posicionara-se mais afastadamente naquel cortejo enquanto se deixava o edifício.
Quando cruzou o arco, fazia-se jus ao cinzento dia que cobria tanto dentro quanto fora, ainda que o sol naquela altura do dia timidamente emitisse um pouco daquela luz difusa, com esparsos raios que firmavam ao chão.
Não sabia dizer acerca de auspícios, mas quem sabe fosse um signo mais esperançoso naquela estação até então pouco clemente, a levar um tanto dos humores dos homens e brios por uma enlutada condição do solo pátrio.
O trovador deteve-se ali mesmo, aguardara aquelas arrumações do esquife que não se alongaram, até que os cavalos foram picados a seguir em frente; enquanto já se iam a sumir pelo horizonte apertado da urbanidade, as gentes foram aos poucos esvaziando o lugar, mais em silêncio do que ruidosamente; alguns voltariam para suas próprias casas, outros, para seguir acompanhando mais viagem da Rainha em penúltima morada, a capela familiar (pois a última seria a cripta, certamente).
Escorou-se Aristarco à coluna lateral que sustentava o arco até que restou mais ninguém ali, pelo menos ao que parecia, exceto a companhia da solitude e dos passarinhos com seus piados, tão alheios ao mundo dos homens (e sem que semeassem ou ceifassem solo, sem que juntassem em celeiro, amparados pelo bom Deus).
Se valêsseis vós homens mais do que os pássaros? Talvez sim... Mas ao final a terra haveria de comê-los todos, levando-os à campa; nisto, homem algum valeria mais do que o menor roedor neste velho mundo.
Subitamente saiu de seus pensamentos quando dois jovens noviços bruscamente vieram a fechar a entrada da Capela Real, estranhando a estada ali de Aristarco; pararam por um instante e olharam para o trovador como se falassem apesar do silêncio : Que fazes aqui? Acabou! Não nos dê trabalho; vai cuidar de tua vida, vai embora!.
Em seguida olharam entre si em expressão de reprovação e sumiram com as folhas da porta se encontrando a produzir bom ruído.
Se Aristarco estivesse um passo adentro, tomaria um empurrão da própria porta expulso que se sentia naquel momento.
Deu um passo à frente e ficou mirando o céu cinzento, a procura do raio do astro maior (quase a querer procurar esperança) que já se escondera nas nuvens. Em vão.
Soprou-lhe uma inspiração para cantar, mesmo que sob temor de ser preso, porque não estava em qualquer lugar para isto fazer, mas se sujeitou ao destino caso assim o quisesse, porque a tristeza era maior do que pernoitar uma noite no cárcere.
E espontaneamente as rimas tomaram forma, ainda que usasse uma melodia famosa de "Gharnatah" (ou simplesmente Granada, como insistiam os castelhanos), que em boa voz o trovador cantou:
AL-ZAJÁL
A partida
Mote
Só tristeza restou agora
Pois Grã Senhora foi embora.
Voltas
Ainda que bem entendesse,
Que esperar mui valesse
Sem que nada assi quisesse,
O fim ancora.
(mote/refrão)
Ainda anjos mui voaram
Que boa alma, carregaram
Sem bondade nos deixaram:
O torrão chora.
(mote/refrão)
Queria se esvaziar se pudesse, mas só havia cantiga para que na ausência do raio de sol, e que na inelutável destinação de gentes amigas e estimadas (ou tudo que fosse vivo) ao túmulo ou seio da terra à morte , com sorte conseguiria angariar um pouco de esperança em dia entristecido.
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| Secrétaire Royal | Minstrel of Gharb al-Ândalus | Flemish-breton of Iberia: al-Musta'rib |