Leonardo passara boa parte da manhã e o inicio da tarde dedicado a análise daqueles documentos conseguidos com LeMahieu. As diversas páginas, relatavam todo tipo de atividade por todo o território europeu. Obviamente, LeMahieu não fora capaz de conectar os pontos, geralmente, suas anotações apontavam para a obtenção de recursos ou a desestabilização de um determinado governante. No entanto, havia certa desordem, que o monge interpretou como ataques de oportunidade.
O jovem italiano observou a prima, extremamente focada no documento que deveria conter, segundo as anotações de LeMahieu, detalhes acerca de uma pintura, cujo o interesse de Hettinger era notável. O rapaz, no entanto, se interessava pelos documentos secundários, aqueles que LeMahieu acreditava serem meros contatos e objetivos menores. Acreditava que se fosse capaz de entender o pensamento de Hettinger em suas operações, seria útil na hora de enfrentá-lo mais ativamente. O sucesso em Dijón fora tão questionável, que se para cada vitória num campo secundário de Hettinger, sofressem uma perda pessoal intensa, estariam liquidados antes mesmo de entender o plano de seu algoz para a Europa.
Leonardo não tinha dúvidas que Anton estava morto. A perda de alguém tão próximo a ele nos últimos dois anos era realmente dolorosa, mas ele não podia se ater aquilo. Perdera tantos entes queridos nos últimos anos, que os golpes batiam surdos no seu peito. É impossível se acostumar a dor da perda, mas assim como todos os outros flagelos da existência frágil do homem, é possível tornar-se mais resistente a cada golpe. Anton, ao contrário de Vincenzo, o orientara sua marcialidade ao equilibrio. Apesar da moral questionável com que guiava suas ações, Anton pendia a estabilidade e justiça, ao contrário da morte pelo prazer.
Reuniu alguns documentos com ele, separando discretamente, de forma que Raquel não notasse. Aproveitou uma pausa que a prima pedira, reuniu os documentos escolhidos, vestiu-se com uma capa e se retirou da casa onde se escondiam. Sabia que Charlie o vira sair, mas o mordomo não poderia deixar Raquel sozinha e isso era a vantagem que o rapaz precisava para que não o importunassem. Não tomou um cavalo, caminhou pelas ruas do centro da grande Lyon, abarrotada de burgueses e todo o povaréu que habitava a cidade em ascensão. Caminhava desconfiado, atravessando o centro, cruzou a pont du Change, observando ao lado, estável sobre a água o quai de Saint-Antoine, de onde saíam e aportavam os barcos que chegavam pelo Saône.
Após cruzar a ponte, apenas algumas centenas de metros o separavam de seu objetivo, os quais apressadamente foi capaz de cobrir em poucos minutos. Chegou diante a maison da família Gadagni. O belo edifício, era guarnecido por alguns guardas contratados, que logo exigiram a identificação de Leonardo. Ao ouvirem seu sobrenome e observarem o mandato que carregava em nome da família, mandaram questionar o chefe da família que morava ali, que o permitiu entrar. Ele cruzou o imenso e decorado, pórtico de entrada, adentrando o hall da mansão. Um guarda o observava atentamente, com o pretexto de escoltá-lo até o escritório do signore Gadagni.
Leonardo sentou-se numa das cadeiras estofadas e cobertas de veludo, que mais pareciam desenhadas para decoração do que para a funcionalidade. Todo o ambiente, organizado, repleto de obras de arte e elementos caríssimos, tinha o objetivo simples de intimidar qualquer um que adentrasse ali. O teto era alto e profundo, diminuindo a perspectiva do observador, fazendo o se sentir menor. O rapaz, não estava acostumado com aquilo, mas entendia o jogo e não entraria nele. Teve de esperar alguns minutos, sob o pretexto de que seu anfitrião era idoso, mas ele jamais teria entrado ali, se não fosse devido a intensa curiosidade do signore que o recebia.
A espera findou com a entrada do homem, acompanhado de seu filho de dez anos. Os cabelos brancos do homem, contrastavam com a viva e encaracolada cabeleira do infante. Os olhos, no entanto, dos dois eram muito semelhantes. O olhar era rápido e fugidio, ao mesmo tempo que profundo. Típicos oportunistas, a família Gadagni era formada por nobres florentinos, pertencentes a linhagem antiga da época de Carlos Magno. Era muito ricos, pela quantidade de terras que detinham e ainda mais ricos pelo sucesso do comércio que faziam com Gênova e distribuíam para a região do Il Delfinato. O homem sentou-se do outro lado da mesa e escrutinou o rapaz.
- Signore Lionardo, não é mesmo? Interessante conhecê-lo. - iniciou o velho, em tom formal.
- Igualmente, signore Gadagni. Sua reputação quanto ao bom gosto e fortuna em Lyon o procedem.O velho se prostrou sobre a mesa, os olhinhos pequenos, ainda mais reduzidos pelas pálpebras semicerradas.
- Me pergunto se a reputação de sua família o procede. - Há muitos exageros, de todos os lados, no final, somos homens de negócios, como o senhor e tantos outros florentinos. - Leonardo percebeu o erro em seguida, mas já havia cometido.
- Não, não, não. - o homem agitou a cabeça e as mãos em negativa. Indignação fingida, mas se a fingia, tinha que ser levada em conta
- Nossas atividades são bem diferentes.
- Ouro é ouro. - sentenciou o rapaz.
O velho sorriu, calmamente, se recostou novamente na cadeira.
- Você é jovem, por isso é que pensa assim, mas para mim, ouro manchado de sangue, é ouro sujoLeonardo cerrou os punhos, detestava a arrogância das outras famílias italianas. Desdenhavam dos condottieri, mas corriam a eles com altíssimas somas de dinheiro, sempre que estavam em apuros. A vida na França, devia ter nublado a visão do velho Simon Gadagni, feito-o esquecer da queda dos Visconti e ascensão dos condottieri Sforza em Milão, duas décadas antes. O rapaz precisou de alguns momentos, para conter um discurso e cautelosamente desviar a situação. O Gadagni queria divertir-se, mas ele não estava ali para isso.
- O ouro é sempre sujo, passa pelas mãos de gente demais, para ser limpo. - ele agitou a mão, como se afastasse o assunto -
O que me traz aqui, signore, não é uma discussão sobre a natureza do ouro, mas um assunto que talvez seja de vosso interesse.
- Estou ouvindo.
- Só precisará ler isto. - o rapaz afirmou, retirando uma das páginas dos documentos de uma bolsa e a depositando sobre a mesa, lentamente.
Os olhos do velho pousaram sobre o documento e correram por ele com velocidade espantosa. Comprimia-os mais e mais, conforme desciam pelas linhas. A sua postura intimidadora, foi aos poucos suprimida por um sentimento de nervosismo e empolgação. Os detalhes que recebia daqueles documento, garantiam a ele uma vantagem impressionante, além de permitir que ele pudesse eliminar registros dos seus próprios negócios ilícitos, mas percebeu que estava incompleto. O idoso levantou os olhos, escrutinando o rapaz, mais uma vez.
- Eu tenho mais comigo. No entanto, você precisará fazer algo por mim, antes de receber as páginas restantes. Será algo simples. Eu quero detalhes sobre os mouros Faheem Al-Naviq em Lyon e Salazar El-Afzal em Portugal. - O rapaz lançou sua proposta.
O velho levantou-se e ponderou, diante de uma belíssima reprodução da constante imagem da Anunciação. O bela pintura já apresentava, ainda rusticamente, os belos detalhes da perspectiva, mas ainda carregavam a forte rigidez aristotélica. Um retrato da transição, que os espíritos italianos representavam naquele mundo de Reis e Santos.
- Quanto a Salazar, não hesito em descartá-lo, mas Faheem é muito útil para nós. É favorável aos nossos negócios, ajudando a nos obter produtos mais baratos, enquanto o pretenso sucessor dele, Yousuf, é muito mais favorável a negociar diretamente com os franceses. - ele lançou um olhar, revelando sua vontade. -
No entanto, há um outro homem nesta associação, chamado Irfaan, talvez com Yousuf fora do caminho, ele possa substituir Faheem, até mesmo melhor.
- Me entregue Faheem e eu cuidarei que o resultado seja favorável aos Gadagni. - O rapaz se levantou -
Esta página fica com você, como um adiantamento, no entanto, quero as informações imediatamente.
O velho apesar de desconfiado, aceitou. Tinha um débito com os Montevani e nada a perder com aquela transação. Os detalhes foram acertados e Leonardo se retirou da maison dos Gadagni com as informações que queria, um objetivo em mente e sua adaga cinzelada presa na cintura.
Iria honrar a memória de seu primo Anton.
Caminhou pelas ruas de Dijón, notando que faltava pouco para o pôr do sol e para o fim do dia. Caso a noite caísse, perdia a estreita janela de oportunidade que possuía. Era provável que os principais contatos de Hettinger não houvessem sido avisados ainda da presença deles em Lyon e mesmo que soubessem, deviam buscar um grupo em fuga. De forma alguma, poderiam prever o que aconteceria.
Leonardo percebeu que estava sendo seguido. Provavelmente um mandado dos Gadagni, para averiguar seus esconderijo. Ele, no entanto, não se preocupou. Preferia que o velho Simon soubesse logo que o trato fora resolvido. Manteve um passo tranquilo, até chegar no quai de Saint-Antoine, onde pretensamente Faheem deveria estar coordenando a distribuição de diversas mercadorias para o interior da cidade. A proximidade do inverno, aumentava os preços e a necessidade por especiarias aumentava, devido ao longo período que seria necessário estocar os alimentos. Cidades como Lyon, não podiam dar-se ao luxo de serem consumidas pela fome. O planejamento antecipado era uma necessidade e era tratado com seriedade. Por conta disso, muitos mouros, utilizavam de seus avançados conhecimentos e familiaridade com a matemática, para conseguir trabalhos e contatos com as companhias mercantes que negociavam com Alexandria.
O ancoradouro estava repleto de comerciantes e estivadores que carregavam os produtos para dentro e para fora das naves aportadas no Saône. Trabalhavam intensamente, buscando encerrar os trabalhos antes que o sol se pusesse e obrigasse a maioria a retornar para casa. Um dos edifícios próximos ao ancoradouro, abrigava um dos escritórios de Faheem. Não foi díficil entrar, muitos homens entravam e saíam, pegando registros e notas que precisavam para concluir os negócios. Leonardo ajustou a adaga, garantindo que ela estaria bem escondida da vista de qualquer um e se colocou a esperar numa ante-sala. Havia um grupo de homens a frente dele para serem atendidos, impacientes, não reparavam no rapaz toscano. Ele se sentia nervoso, mas disfarçava, evitando se comprometer em sua linguagem corporal, como era muito comum de acontecer em situações como essa.
Um tumulto começou na ante-sala, aparentemente, um dos homens havia entrado antes de um comerciante importante que estava esperando a mais tempo. O bate-boca ficou intenso e o comerciante se retirou enraivecido. Aquela situação, havia deixado um dos guardas que fazia a revista, extremamente exasperado, já que ficou murmurando todas as respostas que gostaria de ter dado ao comerciante arrogante. Nesta distração, conversando com outros colegas, deixou de revistar Leonardo, que atravessou um cortinado de veludo, seguindo por um corredor até a sala que servia de escritório para Faheem e seus associados.
- Bienvenue, monsieur... - disse um homem ao recebê-lo com um sorriso simpático.
- Leonardo. - respondeu.
- Bem, monsieur, sou Yousuf e esses são Faheem e Irfaan, pode se sentar, por favor. - o homem apresentou dois outros mouros, do outro lado de uma mesa. Irfaan estava sentado no parapeito da janela, parecia o mais jovem dos três. Faheem, era o mais velho, sentado, compenetrado no que escrevia, apenas acenou ao visitante.
- Não pretendo me sentar, senhor. Meu assunto aqui será bem breve. - ele caminhou a esmo na sala, indo lentamente para próximo da lareira e fitando as chamas. O fogo sempre lhe trazia lembranças...
- O sol está se pondo, Yousuf, peça aos guardas que não deixem mais ninguém entrar. O senhor, Leonardo será nosso último cliente hoje. - Faheem ordenou e Yousuf rapidamente executou a tarefa, gritando da porta.
- Tenho que dizer que o senhor tem sorte, Leonardo. Um pouco depois e não nos encontraria aqui.
Leonardo sorriu. Sua raiva crescia, exponencialmente.
- Sorte na certa, monsieur - disse cavucando a lenha com o atiçador.
- Do que se trata, então, monsieur? - indagou Yousuf
- Dijón. Vocês souberam do que houve lá, alguns dias atrás? - A que se refere, senhor? Muitas coisas acontecem naquela cidade - um certo nervosismo podia ser percebido na voz de Faheem, mas os outros dois, provavelmente desconheciam a verdade da indagação.
- O senhor tem negócios por lá? Sempre desejamos subir o Ródano, acredito que podemos sempre negociar. Tem algum barco na cidade? - Irfaan falou a primeira vez, com um certo entusiasmo contido.
- Acredito que monsieur Faheem sabe o porquê de eu estar aqui. Ele trabalha para Hettinger, o homem que mandou matar o meu primo - Leonardo disse friamente. A raiva crescia dentro dele, consumindo suas ações. O fogo ardia menos do que o seu desejo de vingança.
- Monsieur, pode nos esclarecer de uma vez... - Yousuf se aproximou de Leonardo, como se quisesse ver o que intrigava o rapaz, na lareira.
Leonardo então se virou abruptamente, o atiçador em mãos acompanhou o rápido movimento e sua ponta em brasa acertou em cheio o rosto desatento do mouro Yousuf. O homem emitiu um grito, quando foi golpeado mais duas vezes, completamente desnorteado. O italiano então enfiou o atiçador através do peito dele. O mouro empalado, gritava como louco. Leonardo então o lançou no chão, com o atiçador ainda atravessado pelo corpo. Pegou uma das luxuosas cadeiras e travou a porta atrás dele. Para sua sorte, os guardas estavam distraídos colocando os comerciantes relutantes para fora.
Quando ele se virou, viu que Faheem corria para parede para pegar uma das espadas turcas presa na como decoração. Leonardo era duas vezes mais jovem e mais rápido, chegou ao homem, com a adaga em mãos, quando o mouro estava com os braços levantados e com o peito contra a parede. Tomou os cabelos do mouro, acertando a cabeça dele repetidas vezes contra a parede, até romper uma das tábuas. A esta altura, Faheem não conseguia mais resistir e apenas chorava e murmurava coisas sem sentido, enquanto o sangue escorria por sua cabeça.
- Isso é por Anton! - Leonardo gritou.
Acertou as costelas e as costas do homem com sua adaga florentina repetidas vezes, enquanto o homem caía desfalecido, apenas parou quando se assegurou que o homem havia cessado de respirar e o chão em volta deles, estivesse empapado de sangue. Do outro lado da sala, Irfaan estava comprimido contra a parede, gritando e chorando, implorando pelos guardas. Alguns dos guardas o ouviram e batiam na porta, perguntando o que estava acontecendo. O rapaz italiano sentiu um súbito nojo de todo o sangue que cobria o lugar. Olhou ao redor, viu que Yousuf ainda estava vivo, mas deitado, debilmente tentando tirar o atiçador do peito, enquanto se afogava no próprio sangue.
Leonardo se levantou, cambaleou até a mesa e embainhou a adaga. Sentia como se estivesse se libertando de um frenesi, como um feitiço que o tivesse tomado. Fitou Irfaaan, analisando a reação dele pelo que acabara de acontecer. O jovem italiano já havia visto tantas vezes aquela reação, a forma como alguns homens reagiam ao desastre, principalmente os mais jovens acostumados com o conforto.
- A verdade, é que o homem de sorte aqui é o senhor, monsieur Irfaan. Os Gadagni de Lyon mandam lembranças. - disse Leonardo, antes de evadir-se pela janela.
Estava em um dos andares mais baixo do edifício, o que não o impediu de machucar um dos braços quando se lançou da janela para cair numa carroça de grãos que estavam sendo descarregada na hora. Não olhou para trás, correu pelo ancoradouro, enquanto a penumbra da noite o cobria. Chamou demasiada atenção por todas as ruas, mas poucos quereriam pará-lo para averiguar, estavam ocupados demais. Roubos e demais ataques de violência, não eram tão raros naquele lugar. Leonardo conseguiu encontrar o esconderijo dos Torre e observou o olhar horrorizado de Raquel e Charlie, quando o viram entrar completamente ensaguentado.
Leonardo correu para se lavar de todo aquele sangue, que grudavam em sua pele, frio e seco como o ódio que sentira. Sentia repulsa de tudo aquilo e sentia repulsa de si mesmo. Matara brutalmente dois homens, sem que o tivessem ameaçado diretamente. Repassava a situação em sua mente, a recepção simpática de Yousuf e pouco depois, o homem que batalhava para respirar, sufocado com o próprio sangue. Repassava a forma como tão pateticamente, Faheem se entregara aos braços da morte e Irfaan, como uma criança, urinava nas calças, engasgado com o próprio choro. Lembrou-se do olhar de cumplicidade de Simon Gadagni.
Tudo aquilo fora necessário. Leonardo observara nos documentos, que a maior parte dos contatos de Hettinger na região de Il Delfinato, era realizado por intermédio de Faheem, muitas vezes pelo negócio de fachada que sustentava em Lyon. A notícia da morte de Faheem Al-Naviq se espalharia mais rápido do que a da presença dos Torre e Hettinger ficaria parcialmente neutralizado na região por um punhado de dias ou talvez semanas até que pudesse restabelecer a ordem que perdia com a desestruturação dos negócios escusos do mouro. Isso permitiria que Raquel, Leonardo e Charlie, chegassem até o Auvergne sem grandes problemas.
Leonardo sentiu-se cair em profundo ressentimento. Se Anton não tivesse morrido naquele ataque, as coisas estariam diferentes agora. Ele se sentia mal, por ter deixado o primo para trás, mas sabia que não podia ter feito nada. Odiava Hettinger, por ter sido capaz de derrotar o primo, que muitas vezes, ele julgava ser invencível e por ter feito pela segunda vez, o rapaz liberar o pior do que tinha dentro de si. Leonardo mais que nunca desejava que Anton estivesse ali.