Donnatela.
Os mochos lá longe piavam e a noite caía, mas Tella ainda não tinha dado o dia como terminado.
Há muito que deixara de contar os dias. Quantos mais sóis passavam, mais a infância ficava para trás, e com ela as pequenas facilidades de viver no bairro de lata - já não havia um sorriso cúmplice quando roubava um pão, nem um olhar de simpatia por parte dos que apenas passavam no bairro para cortar caminho. Por fim, a única casa que conhecera, no bairro de lata, fechou-lhe as portas.
Mal havia juntado o primeiro punhado de moedas que merecesse ser mencionado na sua vida, e as portas fecharam-se na porta de Tella.
Sem saber bem o que fazer, rumara de Alcobaça para Leiria. Ainda se recordava do cheiro a pão fresco nas manhãs, entrelaçado com o doce chamar das maçãs. No entanto, as docas de Leiria, e a azáfama do seu porto, davam ocasionais chances de poder ganhar dinheiro a fazer recados, quando o ocasional desconhecido não reconhecia as feições da pequena ladra.
De resto, ganhava da única forma que conhecia - surripiando bolsos e bolsas. Ora deambulava pela cidade durante o dia, procurando casas desocupadas por os donos irem trabalhar para os campos, ora esperava pela noite, e pelos mais isolados a abandonar as tavernas, embriagados. Claro que levara já uma ou outra sova, mas nunca deixava de arranhar, bufar e até morder quando chegava a isso. Perdera dois dentes de leite à dentada, e as abençoadas fadas haviam-lhe deixado uma bolsa de moedas e uma adaga, que era o seu bem mais precioso.
A arena era, por essa razão, o seu lugar predileto - lá treinava, normalmente sozinha, por vezes com viajantes incautos, que lhe faziam render o final de dia deixando-lhe involuntáriamente à mercê os seus pertences. Além disso, as bancadas eram o abrigo perfeito para as noites, e era provavelmente o sítio predileto de Tella em toda a cidade.
Agora, Tella tentava aprender os mesmos movimentos que espiara dos guardas do castelo de Coimbra, num dos treinos que a guarda organizava periodicamente. Saltava, esbracejando com a adaga, ágil. Subitamente, a pequena imobilizou-se, ouvindo os inconfundíveis passos de botas de alguém que tinha dinheiro para botas. Um sorriso atravessou-lhe o rosto, já a sonhar trocar as botas nas docas na manhã seguinte, e saltou rapidamente para as sombras, deslizando para trás das bancadas.
Donnatela.
Tella escutou os passos de alguém que deambulava para dentro da arena. No entanto, o passear lento, cada vez mais perto da entrada para as bancadas em que se escondia, parou subitamente. A pequena deslizou, sorrateira, tentando aproximar-se para ver quem era, mas apenas vislumbrou o vulto que já se voltava para sair por onde viera, agora apressado, claramente com um propósito.
No entanto, o voltar do desconhecido foi o que a pequena precisava para vislumbrar o reconhecível restolhar da batina de um clérigo. Dinheiro, pensou satisfeita, segurando a adaga com afeto, e correndo ligeira atrás do azafamado padre.
Donnatela. O seu recém-adquirido alvo afastava-se em passadas largas. Bufando para si de frustração, Tella passou a correr sem cuidado, caso contrário iria completamente perdê-lo. Mal ele assomasse na saída da arena, não só poderia perde-lo de vista, como pior, poderiam haver testemunhas ou até quem se atrevesse a tentar ajudar a sua presa.
Na pressa de o alcançar, captou a sua atenção. Ofegante, a pequena parou subitamente, como um animal ofuscado pela tocha. As sombras não a deixavam entrever com clareza quem era, mas o rosto do clérigo pareceu-lhe jovem. A sorte surriu-lhe, e o homem voltou-se de novo para prosseguir caminho.
Desatando novamente a correr, Tella calcorreou a distância que os separava até finalmente poder saltar aos joelhos do incauto padre. Sem hesitar, a pequena arremessou-se, tentando derruba-lo, ou pelo menos desnortea-lo o suficiente para ter alguma vantagem inicial.
Donnatela. O suor do padre, que fixava a sua adaga como se estivesse a falar com ela, fizeram a pequena franzir as sobrancelhas.
Agachada, e pronta a saltar-lhe em cima se ele se tentasse levantar, apontou para a bolsa do padre.
- Nã' vamos jogar às cem perguntas. Dê o que tiver na algibeira e ambos seguimos caminho. - cerrou os dentes, o olhar fixo nas feições do padre, a expressão teimosa, enquanto apertava a adaga com mais força, como que à espera que ela falasse por si também.
Donnatela. Tella rolou os olhos, impaciente. O homem havia-se refeito rapidamente do susto, o que a aborrecia um pouco, e ter arruinado o seu bluff com sucesso aborrecia-a bastante.
No entanto, as suas palavras não faziam sentido nenhum, e o sorriso que se espalhava na cara do clérigo recordou-a dos sorrisos que via quando era mais pequena, mas que agora quase a irritavam. Uma criança facilmente obtém um pão quando vê tais sorrisos, cheios de comiseração, mas mais frequentemente, a jovem via esse sorriso quando estava prestes a ser rebaixada - como se a vida não lho fizesse só por si.
Exasperada, Tella voltou a bufar.
- Ok, então s'o senhor quer jogar, vamos. Uma luta na arena, e se eu ganhar fico com tudo o que tem. Botas incluídas. - acrescentou rapidamente, fixando os olhos nas botas, que certamente lhe valeriam um par de dias despreocupados.
Donnatela. Saltando para se levantar, em toda a sua altura, a pequena manteve a expressão teimosa e aquiesceu, mas não sem novamente rolar os olhos, incrédula com a ingenuidade do padre, que já lhe estava a parecer infinita.
- De acordo - disse, sem intencionar metade das suas palavras, nem acreditar que perderia. Mesmo que ele ganhasse, tencionava correr para os seus pertences e fugir com eles. Era raro um transeunte que não vivesse no bairro de lata conseguir perseguir os seus habitantes, sobretudo com estes no seu meio-ambiente.
Donnatela. Tella seguiu o estranho padre, cogitando formas de o atraiçoar e a que artimanhas recorrer. Atravessou-lhe uma vez ou duas simplesmente ataca-lo pelas costas, mas algo lhe dizia que iriam haver repercurssões mais graves do que chibatadas por parte dos guardas locais se alguém ferisse um clérigo, fosse criança ou não - não havia diferença quando a pessoa era do bairro de lata.
O jovem parou na arena e voltou-se para ela. Tella empunhou a adaga, novamente cerrando os dentes, contendo o seu próprio nervosismo. As feições do padre estavam enrijecidas, e o olhar era o de alguém decidido. Tella sentiu um arrepio de hesitação, mas, como um animal encurralado, isso apenas a tornava mais errática e imprevisível.
Inalou, e desatou a correr. O padre levantou os braços, mas Tella já havia fincado os pés no chão antes de se catapultar, arremessando-se para o ferir onde a adaga o alcança-se.